Mundo Agrario, abril - julio 2022, vol. 23, núm. 52, e185. ISSN 1515-5994
Universidad Nacional de La Plata
Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación
Centro de Historia Argentina y Americana

Artículo

Notas sobre a expansão do agronegócio: das regularidades discursivas aos homens de camisa azul

Gustavo Meyer

Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) / Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural da Universidade de Brasília (UnB), Brasil
Gabriel Túlio de Oliveira Barbosa

Universidade Federal do Tocantins (UFT), Brasil
Cita sugerida: Meyer, G. y Barbosa, G. T. O. (2022). Notas sobre a expansão do agronegócio: das regularidades discursivas aos homens de camisa azul. Mundo Agrario, 23(52), e185. https://doi.org/10.24215/15155994e185

Resumo: Este artigo reflete sobre o entrelaçamento entre discursos e imagens que dão lastro à expansão e ao enraizamento da chamada sociedade do agronegócio. Embora esta pressuponha a imposição de interesses manipulados por quem nela ocupa posição privilegiada, a discursividade que sustenta suas práticas também está inserida na fronteira do campo da cultura. Através de etnografia endereçada a grupos sociais que habitam tal sociedade em uma porção do Planalto Central brasileiro, o texto descreve como esses grupos, acionando uma espécie de protótipo (do “homem de camisa azul”) e partilhando um éthos, carregam consigo valores, crenças e traços identificadores de uma coletividade.

Palavras-chave: Agronegócio, Discurso, Éthos, Imagem.

Notes on the expansion of agribusiness: from discursive regularities to the renewed “blue-collar” men

Abstract: This article reflects on the intertwining between discourses and images that support the expansion and embeddedness of the so-called “agribusiness society”. Although its operation implies the imposition of interests, manipulated by those who occupy a privileged position, the discursiveness that sustains their practices is inserted in the border of the field of culture. Through an ethnography directed to social groups that inhabit such a society in a portion of the Brazilian Central Plateau, we describe how these groups, triggering a kind of prototype (the “blue-collar man”), share an ethos, values, beliefs and traits that forge a collectivity and an identity.

Keywords: Agribusiness, Discourse, Ethos, Image.

Introdução

Uma das muitas peças publicitárias recentes ligadas ao enaltecimento do agronegócio no Brasil fez do slogan “#feita para quem faz” a marca para a venda de um modelo da caminhonete S10 da Chevrolet. Veiculada no horário nobre da televisão brasileira, a apologia “agro” conduz a linha narrativa do início ao fim do comercial, como que projetando uma mensagem num ofuscante e luminoso projetor para todo o país: “é hora de valorizar quem carrega o Brasil nas costas”.

A “voz-over” que conduz as cenas da publicidade enuncia o seguinte texto: “Algumas pessoas vão sempre apontar o dedo pra gente que vive do campo. Mas nós vamos nos levantar ainda mais cedo para cuidar do rebanho, do futuro da fazenda e até do futuro de quem aponta o dedo”. O texto narrado, por vez, está sobreposto às imagens de um homem, de pele clara, aparentemente trajando uma camisa social de cor azul clara e mangas compridas. Na medida em que a narração do comercial menciona essas pessoas que “apontam o dedo para a gente que vive do campo”, o homem fita seu telefone celular com preocupação, pois testemunha uma manchete em tom de alarde veiculada em sua tela: “agronegócio e desmatamento”. Troca-se o plano. Na sequência, o homem – com sua camiseta azul – pilota de forma determinante uma imponente caminhonete pelo campo verdejante, acompanhado por um jovem adolescente, também de pele clara e de cabelos loiros, de forma que o primeiro aponta o rebanho da propriedade rural para o segundo. Este último será responsável pelo “futuro da fazenda” – e, vale ressaltar, de toda uma nova geração, inclusive daqueles “que apontam o dedo” ao agronegócio...

Longe de propor uma análise pormenorizada sobre a relação entre o agronegócio e as campanhas publicitárias de empresas privadas parceiras do setor, este artigo inaugura sua argumentação a partir do comercial em questão como exercício introdutório para uma construção dialética entre o referido produto midiático e o resultado de nossa investida empírica e teórica. Tal construção levanta questões, hipóteses e argumentações no sentido de compreender a centralidade dos aspectos relacionados a discursos e imagens no que concerne à expansão do agronegócio no Brasil.

Postulamos aqui que, se as percepções de um “agro” que é “pop”, “tech” e “tudo” vêm ganhando cada vez mais presença como um corpo imagético na programação da TV aberta e em outros mecanismos de disseminação na opinião pública no país, algumas das nuances de sua persuasão podem ser colocadas em uma chave crítica de análise, seguindo um nivelamento de formas e conteúdos no que diz respeito à construção de sentido operada por representações, narrativas, imagens, alegorias e discursos. Afinal, tais mensagens ou enunciados repercutem na maneira como a sociedade enxerga e projeta suas próprias interpretações desse setor da produção e do empresariado no país.

Alguns dos elementos presentes na peça publicitária da caminhonete S10 se arquitetam como abertura de nossa argumentação por sintetizar alguns dos pontos absorvidos por nós em análises do tema em questão. Na construção produzida acima, evidenciamos propositadamente uma camada que mobiliza enunciados do agronegócio – a voz que cria a narrativa, a defesa, argumentação, o contra-ataque aos críticos – e outra envolve as imagens projetadas para “dentro” e para “fora” desse universo – o “homem ideal”, sinônimo de sucesso, a caminhonete, a propriedade. Assim, com menos de trinta segundos de duração, mas com grande capacidade de alcance, tal construto visual é capaz de elaborar o produto mimético das relações de um universo em plena ascensão, com centralidade determinante para o debate social, econômico, ambiental e cultural brasileiro.

De forma análoga, nossa chave interpretativa concebe aqui o agronegócio como uma categoria política, econômica e social (Bruno, 2012), emergindo como produto de ressignificações contemporâneas da agricultura tecnicizada (em geral de larga escala) e suas relações com o universo multissetorial vinculado à agroindústria e suas ramificações. O prefixo “agro”, por sua vez, se apresenta mais como signo e/ou emblema do que como atributo socioeconômico, forjando, portanto, uma espécie de categoria nativa, largamente adotada entre aqueles habitam o território e a sociedade do agronegócio. Os elementos apresentados na publicidade – caminhonetes suntuosas, operações discursivas contra as críticas levantadas ao setor, enaltecimento da ética do trabalho, culto à tecnologia e à racionalidade, além de certo tipo social protagonizado pelo “homem de camisa azul”1 (como veremos adiante) – são apenas alguns dos procedimentos de legitimação de práticas e estabelecimentos de regimes de verdade (Porto, 2014; Pompeia, 2018).

Isto nos sugere, mais especificamente e indo um pouco além, que a movimentação social em torno do agronegócio exigiu a criação de novas relações culturais nos processos de adaptação dos diferentes grupos uns aos outros, forjando códigos, signos e identidades, entre outros elementos nutridos pelo campo das estratégias orquestradas. Na perspectiva de Wolf (1987; 2001), estaríamos diante do entrelaçamento entre poder, ideologia e cultura, imbricação esta que pode ser desmembrada e referenciada por diferentes camadas de análises (Ribeiro & Feldman-Bianco, 2003).

Neste artigo, nos debruçaremos sobre a lacuna evidenciada no que diz respeito a determinadas mensagens do agronegócio, perseguindo entrelaçamentos entre ideologia e cultura, mas, principalmente, recolhendo pistas que apontam para costumes partilhados, enraizados em uma sociedade do agronegócio. O interesse por esses objetivos, além de estar balizado por um problema teórico específico, foi engendrado aqui a partir de dois insights empíricos fundantes, ligados a construtos de enunciação, no primeiro caso, e de construção imagens, no segundo.

O primeiro faz referência a setembro de 2018, quando investigávamos discursos empreendidos por agentes do agronegócio no Planalto Central brasileiro (ligados à agricultura irrigada de larga escala), discursos estes que entendíamos serem persuasivos, e, assim, legitimadores de práticas produtivas altamente demandantes de água. No entanto, em tal processo, levantamos a suspeita de que esses agentes acreditavam em seus discursos mais do que supúnhamos, algo que nos exigiu levá-los mais a sério, no sentido de tomar suas falas também como narrativas de mundo, desviando nossos olhares do ímpeto legitimador que almejávamos escrutinar.

O segundo insight surgiu inadvertidamente, também em 2018, quando alguns homens visivelmente ligados ao agronegócio, trajando sempre camisas sociais de cor azul, ocuparam algumas mesas de um restaurante. Em realidade, esses agentes já frequentavam este e outros estabelecimentos situados nessa mesma área de irrigação, de modo que o insight foi o de ter-se presumido a existência de um éthos constituído no seio do agronegócio ali, e as imagens de camisas azuis, pela regularidade com que se compunham à nossa frente, apontavam para isso. No entanto, tínhamos em mãos (e sem maiores certezas) apenas a ponta de um imenso novelo, o qual buscaremos desenrolar ao longo deste trabalho. O desenvolvimento desses dois insights estará em evidência no tópico dois e três deste artigo, respectivamente, contudo, antes nos debruçaremos sobre as nossas principais premissas e delimitaremos temporal e espacialmente o contexto da pesquisa.

1. Contextualização da pesquisa: da ressignificação de estereótipos aos pivôs centrais

Se algum estudioso tivesse que escolher um ícone para representar sinteticamente a expansão recente do agronegócio brasileiro, haveria grande possibilidade de tal ícone ser o ‘gaúcho’ do Sul do Brasil. É certo que experiências agrícolas diversas no período colonial e na república antecederam a atuação desses atores – as plantations canavieiras no Nordeste, o café paulista, o algodão etc. (Fausto, 2006) –, mas, desde a “modernização” da agricultura iniciada na década de 1960 (Delgado, 2005), nenhum ente outro parece ter estado à altura do ‘gaúcho’. Incubaram e solidificaram valores produtivistas por décadas, até que o Brasil estivesse “pronto para ele” e sua migração país afora. Em um contexto político militarizado, os ‘gaúchos’ adentraram o Estado e o território da nação de um modo específico: entre outras formas, marcadamente via os programas de desenvolvimento agrícola implementados nas décadas de 1970 e 1980 (Freitas, Sobrinho & Mello, 2019).

‘Gaúcho’, colocado aqui entre aspas simples2 para designar uma categoria êmica, corresponde a um termo genérico – mas, ainda assim, êmico – bastante impreciso, que, entretanto, pode ser percebido como formulação nativa de designação na maioria dos espaços que abrigaram expansão agrícola recente. Nestes contextos, ‘gaúcho’ não denota simplesmente um gentílico, mas um grupo social oriundo do “Sul” do Brasil, de pele clara, de fala diferente e de valores culturais particulares. Assim gaúchos vindos dos estados do Paraná, Santa Catarina e, não raro, de São Paulo, são todos ‘gaúchos’ quando estão em terras de agronegócio. Nos planos locais, onde se desenrolaram experiências de colonização agrícola, sobretudo nos pequenos e médios municípios que se prestam à agricultura mecanizada, os ‘gaúchos’ são percebidos como agentes dotados de ímpeto produtivo inigualável, demonstrando imensa perseverança; sobretudo, aparecem como atores engajados com a mudança técnica, social e natural, organizados em cooperativas e envolvidos na tessitura de poderosas redes familiares (Andrade, 2008; Gaspar & Andrade, 2014). A despeito de serem heterogêneos quanto à origem, igualam-se e conformam-se enquanto grupo a partir de identidades opositórias localmente formuladas.

Apesar da proeminência desses atores e de seus deslocamentos na composição do atual agronegócio, outros percursos sociais ainda devem ser considerados no sentido de se entender a conformação da sociedade por trás dessa categoria econômica, política e social que é o agronegócio.3 Particularmente, fazendeiros oligarcas ocupantes dos mais diversos rincões também adentraram esse cenário, em processos que lhes exigiam espécies de “atualizações” para permanecerem em cena, fazendo-os se renovarem e se reposicionarem diante das transformações em cursos desde 1960. Se, por um lado, este reposicionamento implicou mudanças técnicas, gerenciais e de relacionamento nos níveis locais e supralocais, denotando novos padrões tecnológicos e de rentabilidade e forçando investidas na empresarização da atividade agropecuária, por outro, foi desprendido um esforço articulado de ressignificação do estereótipo desses fazendeiros, correndo em paralelo à diáspora ‘gaúcha’ e à modernização da agricultura. Tal ressignificação engendrou a construção da imagem do “produtor rural” boa gente, empresário inovador, empreendedor arrojado, moderno, tecnológico e promotor da sustentabilidade social e ambiental, num movimento em que certa simbologia do atraso, à qual estavam associados (como ao fazendeiro-coronel improdutivo) parece ter sido deixada para trás (Bruno, 1997; Mendonça, 2010)

Esses diferentes percursos sociais, seja o do ‘gaúcho’ (principalmente) ou o do fazendeiro latifundiário, e provavelmente ainda muitos outros menos expressivos, parecem ter confluído para a conformação de uma sociedade do agronegócio (Heredia, Palmeira & Leite, 2010). Sociedade esta, no mínimo, caracterizada pela necessidade de atualização e renovação constante de seus atores, para muito além do reposicionamento em um plano físico decorrente das ondas colonizadoras. Isto porque, por um lado, o padrão concorrencial adjacente à produção agrícola e agroindustrial alterou-se, exigindo, de fato, a tecnificação e a adesão a perspectivas produtivas ditas “mais avançadas”,4 marcadas pela empresarização, pela produção em escala e pela intersetorialização;5 por outro lado, com a transformação do modelo agrícola, instalaram-se críticas, formuladas no âmbito de uma sociedade mais abrangente, que passaram a expor as externalidades geradas em seus empreendimentos, especialmente em relação aos efeitos ambientais e sociais em jogo, como a concentração de terras e da água, a contaminação química dos alimentos e do meio ambiente, os riscos da manipulação genética, etc.

Como resposta à essas críticas, as impactantes práticas das monoculturas em larga escala vêm sendo, cada vez mais, amparadas por estratégias de legitimação, em que se acionam operações discursivas, imagéticas, simbólicas, entre outras. Estratégias estas que, para serem efetivas em cenário tão amplo, requerem certa concertação de interesses (Pompeia, 2018; Porto, 2014; Bruno, 1997), de formas variadas, ligando agentes que outrora apareciam diversos e dispersos no espaço, como fazendeiros oligarcas e pequenos produtores ‘gaúchos’. Também, consolidando conceitos (Porto, 2014), adentrando esferas políticas (Pompeia, 2018) e criando cosmovisões positivas e totalizantes, implicando toda a sociedade (Gerhardt, 2021) – daí que a expansão do agronegócio se mostra muito mais do que territorial. Com isso, elementos diversos da esfera dos interesses e da legitimação das atividades agrícolas de larga escala podem ser percebidos pairando o agronegócio. O que fica menos evidente, entretanto, são os resultados e consequências da movimentação de seus atores em termos da conformação de uma sociedade particular que os une, nos termos de Heredia, Palmeira e Leite (2010), a sociedade do agronegócio.

Desse campo de batalha, em que figuram atores consorciados para emplacar ideias-força (Ribeiro, 2008) e fazer frente à crítica contemporânea, emergem também forças aglutinadoras, forjando códigos, valores e traços culturais que passam a ser compartilhados. Tal aglutinação parece resultar, por um lado, da própria movimentação desses atores no cenário, uns na direção dos outros, em busca de convergências, para além dos efeitos do compartilhamento de práticas – o ato da produção em si – e das operações identitárias que daí decorrem. Por outro lado, o conteúdo da ideologia legitimadora, formulado para fazer frente às referidas críticas ao agronegócio, parece compor uma espécie de repositório, ao qual esses atores recorrem para selecionar elementos que comporão sua narrativa de mundo.

Neste artigo, tal problematização teórica está encadeada pelos dois insights empíricos fundantes, explicitados na introdução. Ou seja, por um lado, acompanhando os discursos empreendidos por agentes do agronegócio e, por outro, entrevendo a regularidade do éthos ligados aos “homens de camisa azul” no Planalto Central brasileiro. A pesquisa se desenvolveu em contexto territorial específico e emblemático, por se tratar do maior polo de irrigação da América Latina, que envolve porções contíguas dos municípios de Cristalina, Luziânia, Formosa (em Goiás), Unaí, Paracatu, Cabeceiras (em Minas Gerais), além do Distrito Federal.

Surpreendentemente, a dinâmica social desse polo é praticamente desconhecida por pesquisadores envolvidos com as ciências sociais e/ou os estudos rurais, muito embora ela corresponda a uma das primeiras áreas de colonização agrícola do Cerrado. A agricultura “modernizada” chegou ali em meados da década 1970, quando ‘gaúchos’, estimulados pelos já mencionados programas de colonização agrícola, (re)ocuparam-na, e, assim, implementaram drásticas mudanças paisagísticas e sociais, especialmente nas áreas de ‘chapada’ (mais planas e chuvosas), a despeito das formas pregressas de existência que ali se desdobravam, mais intensamente nos ‘vãos’.

Antes de o polo ser forjado, compunha-se ali um território onde desenrolava-se uma ‘época das fazendas’, uma espécie de regime em que figuravam, marcadamente, ‘fazendeiros’ personalistas e ‘agregados’ de fazendas vivendo em estreita relação com a natureza. Sendo a área espacialmente dividida entre ‘vãos’ (aprox. 600 m de altitude) e ‘chapadas’ (aprox. 900-1100 m), nestas últimas preferencialmente criava-se ‘gado na solta’, por parte de vaqueiros arregimentados por ‘fazendeiros’. Nos ‘vãos’ desenvolvia-se (e ainda se desenvolve), em geral, a agricultura, pelos ‘agregados’. A dinâmica nas ‘chapadas’, onde hoje estão localizados os sistemas de irrigação, mantinha estreita relação com a dinâmica social dos ‘vãos’, no sentido de que o complexo ‘vãos’ - ‘chapadas’ abrigava histórias próprias, da vida social, natural e produtiva, a despeito da clássica narrativa de desenvolvimento formulada e propagada pelos ‘gaúchos’ (Heredia, Palmeira & Leite, 2010; Prefeitura Municipal de Chapada Gaúcha, 2012; Andrade, 2008).

Desde essa nova ocupação, o cerrado foi sendo substituído por extensos plantios de soja, milho, feijão, algodão, e, desde a década de 2000, hortifrutigranjeiros6 (principalmente tomate, cebola, batata, alho e cenoura). Estes últimos surgiram ali em razão da implantação ampla da irrigação, que hoje soma mais de 5000 pivôs centrais.7 Designaremos esta área como “Pi-place” (Polo de Irrigação do Planalto Central), que, além de uma sigla, alude ao polo como o lugar dos pivôs, onde se encena uma das experiências de agricultura tecnicizada mais sólidas e “bem-sucedidas” no Brasil, razão pela qual supomos que o estudo de sua dinâmica social possa gerar preciosas informações acerca da expansão do agronegócio país afora, em especial no que tange à conformação de sua sociedade.

Dado esse contexto, buscamos direcionar a pesquisa a agentes ‘gaúchos’ diversos posicionados no Pi-place, ao mesmo tempo ligados de formas variadas ao agronegócio. Enfatizamos na pesquisa os textos, falas e discursos de gerentes de empresas agrícolas e agroindustriais e aos porta-vozes do agronegócio ali (vinculados a associações de irrigantes, sindicatos rurais etc.), tema que será desenvolvido no próximo tópico. Durante os trabalhos de campo, ajustamos ainda o foco de análise, incorporando uma busca por imagens dispersas pelo território dos pivôs centrais, as quais se assentavam, além da ambiência verdejante e opaca das lavouras, uma multiforme presença de homens com camisas azuis e caminhonetes brancas, especialmente no perímetro urbano. Em linhas gerais, as informações de pesquisa foram geradas entre setembro de 2018 e agosto de 2019, recorrendo-se a métodos variados, dentre eles, as observações simples e participante, conversas informais e entrevistas (abertas, semiestruturadas e em profundidade). Entre março e agosto de 2019, em paralelo, uma etnografia endereçada a trabalhadores rurais do Pi-place também foi realizada, a qual nos muniu de dados, insights e informações.

2. As regularidades discursivas

Em consonância com movimentos mais amplos de legitimação do agronegócio, a dinâmica social no Pi-place é marcada pela ação de agentes almejando retirar de cena, em movimentação estratégica, as externalidades negativas de suas práticas agrícolas monoculturais. Essa questão – já senso comum nos corredores acadêmicos – constitui nosso foco de interesse, não em razão das estratégias em si, mas pelo fato de que, de tal movimentação, pode-se extrair evidências importantes acerca da sociedade do agronegócio que ali opera. Em outros termos, a legitimação encerra por se dar também na esfera moral e dos costumes, mobilizando crenças e padrões de conduta que, normalizadas e interiorizadas, fortalecem tanto seu poder de persuasão e capacidade de sedução como a coesão do grupo social e sua coerência interna.

Tal mobilização de crenças e condutas se organiza a partir do status quo de um léxico racionalista e instrumental que coincide com aquilo que Hansen denomina como “língua degradada da comunicação da sociedade industrial” (Hansen, 2012, p. 128), de maneira que entendemos esse léxico também estendido aos setores da larga produção de commodities, do agrobusiness e da típica modernização conservadora brasileira. No Pi-place, o processo de legitimação pode ser apreendido em termos de regularidades discursivas, que aparecem ora como mensagens emanadas por parte de agentes do agronegócio. Essas regularidades dizem respeito não somente a conteúdos pelos quais se busca explicar a realidade circundante às práticas agrícolas, mas também aos mecanismos detrás da argumentação.

Apresentamos nesta seção, ao menos seis perspectivas recorrentes de maneiras como o discurso emerge enquanto uma espécie de conjunto de referências enunciativas adotadas por agentes ligados à materialidade do agronegócio ali, a saber: a) rebaixamento social; b) refutação da crítica; c) ciência como crença; d) instrumentalização da natureza; e) sacralidade e benevolência; f) legalismo.

Dentre tais regularidades, uma das mais marcantes ali é o “rebaixamento social”, recorrentemente acionado para posicionar e julgar pequenos agricultores dos ‘vãos’ e trabalhadores migrantes. Figura, neste caso, a negação do diferente a partir da projeção de imagens pejorativas a respeito destes últimos agentes, cujas representações (da natureza, da organização do espaço e da vida) contrastam com aquelas acionadas pelos ‘gaúchos’ do agronegócio. Aos residentes dos ‘vãos’, projetam-lhes o atraso, ao passo que trabalhadores migrantes temporários (‘peões’, vindos de vários estados do Nordeste) aparecem como sujeitos sem cultura, que vivem em “invasões”, violentos, preguiçosos, que não se apegam ao trabalho. Discursivamente, os ‘peões’ parecem “não ser gente”, mas sim ‘essa gente’, à exceção de quando se comportam como bons trabalhadores (Meyer, 2021).

Nessas concepções formuladas sobre o outro, sobre o diferente com o qual o migrante ‘gaúcho’ bem-sucedido tem que “conviver”, a tônica não parece ser influenciá-lo ou cooptá-lo para seduzi-lo ao mundo do agronegócio, mas sim estabelecer para com ele uma fronteira. O rebaixamento aparece, então, como princípio classificador em que o “eu” se constrói em oposição ao “outro” (Oliveira, 1976), um artifício contrastivo em que se funda a identidade (Nogueira, 2017, p. 116). Os ‘gaúchos’ das ‘chapadas’ no Pi-place, diferentemente de seus agentes opositores, mostram-se como desbravadores e trabalhadores, se orientando a partir de uma concepção funcional e tecnicizada da natureza (Santos, 1994). É assim que se mostram como grupo que compartilha valores e modos, em sentido tal que o rebaixamento é não menos do que um movimento incessante de circunscrição a uma dada realidade construída.

É de se notar que o recurso do rebaixamento não ocorre como prerrogativa dos agentes do Pi-place. Heredia, Palmeira e Leite (2010), e Porto (2014), também apontam para essa artimanha sendo realizada por outros grupos do agronegócio país afora. Isso denota a ampla comunicabilidade entre atores, a construção de redes de curto, médio e longo alcances e o acionamento de identidades, conferindo coerência à categoria “sociedade do agronegócio”. É sabido que os processos identitários emergem do compartilhamento de experiências (formas de ver a natureza, origens, fatos históricos, símbolos etc.) e de significados frequentemente encapsulados pela memória do grupo (Nogueira, 2017, p. 106). É nesse sentido que parece querer-se negar a história e agência dos nativos no território (como os agricultores dos ‘vãos’), de modo que a única continuidade histórica ali é a vida pregressa no “Sul”. Fabrica-se no plano local uma nova história, segundo a qual ali não havia “nada”, só mato e onça, até que chegaram os ‘gaúchos’ e trouxeram o “desenvolvimento”, dando lastro, uma vez mais, à elaboração identitária. Nessa perspectiva, os residentes dos ‘vãos’ parecem não caber nessa história, que se constitui como estratégia de legitimação discursiva, e, ao mesmo tempo, como processo de autofabricação em um novo contexto.

Vejo muita gente falar que tem que preservar as culturas, as culturas dos povos, não sei quê, não sei quê... Que cultura esse povo quer preservar, de miséria? Quem fica na cidade debaixo do ar condicionado quer preservar a cultura de miséria lá do povo. Agora você vai ver, todos os nossos funcionários, são todos da região [dos ‘vãos’, à jusante das áreas de irrigação]. Dois vieram do assentamento de sem terras de Buritis, que é um outro problema (...). Pergunta pra ele se ele quer morar na casa boa que ele mora ou se ele quer voltar a morar no ranchinho de palha com a família dele, morrendo o povo de doença de chagas, morrendo sem recurso. O que que esse povo quer preservar, gente? Não entendo... (fala da presidente de uma associação de irrigantes no Pi-place, 2018).

A “cultura de miséria”, “da doença” (de chagas), da falta “de recurso” (que nesse caso se refere às facilidades do mundo moderno) e de práticas ambientalmente deletérias ficam, então, sendo a marca das famílias de agricultores dos ‘vãos’. Na mesma fala, cria-se ao mesmo tempo a imagem de um suposto “olhar externo” (crítico ao agronegócio), que “fica na cidade debaixo do ar-condicionado”. Tal ponto de vista evoca pistas da distribuição de poder entre diferentes agentes ligados direta ou indiretamente ao agronegócio (os que o praticam, os que o criticam sob o frio do ar-condicionado e os que tiveram que hospedá-lo em seu mundo), nos introduzindo à “refutação da crítica”, que constitui uma segunda regularidade discursiva em cena.

Os “rebaixamentos sociais” não deixam de constituir-se enquanto oposições contrastantes e de “fronteira”, como apontamos anteriormente, mas os críticos ao agronegócio (como os agentes socioambientalistas ligados a organizações não-governamentais, posicionados sob o ar-condicionado) são aqueles que aparecem disputando narrativas com os ‘gaúchos’ de modo mais acirrado. Na visão hegemônica destes últimos, esses “críticos” operariam uma racionalidade urbana desconhecedora da verdadeira realidade do campo. O acionamento desse contra-ataque às críticas aparece como estratégia legitimadora do agronegócio, na medida em que descreditam os agentes opositores, ao mesmo tempo convergindo, uma vez mais, para afirmar e reforçar parâmetros do grupo. Delimitam-se assim os agentes “de fora” da sociedade do agronegócio, em processo multiescalar, envolvendo-se tanto o plano local (onde estão os residentes dos ‘vãos’ e ‘peões’) como o supralocal (com os agentes socioambientalistas, onde quer que estejam).

A terceira regularidade recursiva analisada por nós seria o caráter enviesado de cientificidade – que chamaremos aqui de “ciência como crença” – que, tal qual os rebaixamentos e refutações, marca as falas de representantes do agronegócio no Pi-place, por sua vez pautados em conhecimentos volumosos, pintados com cores de inquestionabilidade e dados minuciosamente encadeados. Uma explicação científica bastante pitoresca que circula ali faz referência à justificação da agricultura irrigada, sendo esta representativa da forma como se aciona a ciência nas práticas existentes ali. Na visão dos ‘gaúchos’, os solos da agricultura irrigada têm maiores quantidades de carbono que aqueles cobertos com cerrado, fato que estaria associado à elevada capacidade de sequestro de carbono por parte da agricultura tecnicizada. Nessa lógica, a substituição do cerrado pela soja irrigada contribui para o aumento da matéria orgânica, e, por consequência, para a retenção de água no solo, e, assim, para a recarga de aquíferos e dos rios. Não há dúvidas, entretanto, de que as informações científicas são organizadas com seletividade,8 a despeito das referências sócio-históricas e ambientais que poderiam compor com mais complexidade a explicação da realidade “agrícola”.

Ainda que seja difícil estabelecer uma fronteira rígida entre ciência e crença, a forma de transmissão e irradiação desses conhecimentos parece não ser propriamente científica. No Pi-place, as informações científicas, em grande medida, são socializadas em eventos rituais,9 nos quais experts respeitados no interior do grupo agem como interlocutores. Não se trata de eventos propriamente científicos em que se travam disputas por explicações, tampouco esses eventos configuram-se como arenas com múltiplos atores em disputa. Ao contrário, trata-se de rituais internos ao grupo, estimulados e organizados por produtores rurais, empresas e associações de renome local ou regional, em que as informações científicas são socializadas, em espécies de cultos, e incorporadas por agentes diversos ligados ao agronegócio. Se a eleição desses experts como porta-vozes da ciência aos produtores rurais e outros agentes aparece como movimento estratégico, os efeitos de sua atuação extravasam para o interior do grupo, em um sentido aglutinador, e reverberam, assim, na dinâmica social do território.

Na perspectiva desses agentes, tudo aquilo que não se encaixa em seu encadeamento lógico-discursivo, sustentado por cientificidade, é adjetivado como irracional. É assim que a “instrumentalização da natureza” (a quarta regularidade discursiva) se constitui enquanto adjetivo fundante da narrativa e é acionada para a validação de questões estruturantes do agronegócio, que remetem às características gerais de seu “modelo”, como o uso da natureza, em particular a terra e a água.

Se uma das críticas ao agronegócio é a de que este promove graves custos socioambientais devido ao uso extensivo da irrigação, recorre-se, em contrapartida reativa, o argumento instrumental de que, no Brasil, a água, sendo abundante, apenas escorre perdendo-se no oceano. Defender a irrigação deste oceano, em última instância, constitui atitude irracional em país onde sobra água, ou seja, um “desperdício irracional” para um país “subdesenvolvido”. A despeito dos argumentos de socioambientalistas e de agricultores dos ‘vãos’, o aumento dessa exploração não só é possível como desejado, ideia que emana de distintos atores coligados em torno do agronegócio. Uma vez mais parece não se tratar apenas de estratégia para atender a interesses. Há aí um ponto de vista um tanto estruturante e as estratégias discursivas dão indícios de que transbordam para um entendimento de mundo, produzindo efeitos múltiplos.

Um dos resultados disso parece ser que a natureza, para além de tecnicizada, aparece como imenso reservatório de matérias-primas úteis, como um verdadeiro estoque de bens econômicos (Winner, 2002, p. 194). Nessa perspectiva, interna à sociedade do agronegócio do Pi-place, não ter a natureza subjugada ao seu valor estritamente utilitário é atitude irracional, irracionalidade esta que emerge como significante de pobreza e subdesenvolvimento. Assim ser racional ou irracional constitui forma de classificar os agentes do mundo e de concebê-los e, ao mesmo tempo, conforma mais um tipo de operação fronteiriça, identitária, em um jogo em que apenas de um lado está quem pensa de modo racional. Em tal operação, determinados traços culturais (a crença na ciência, a natureza como fonte inesgotável de recursos etc.) são selecionados de um amplo repositório (moderno, capitalista, utilitarista), culminando em forma particular de conceber o mundo e apontando para processos de decodificação das diferenças culturais.

Como que em contraposição à forma instrumental de conceber a natureza, de desnaturalizá-la e desumanizá-la, entra em cena a figura da “sacralidade e benevolência”, quinta regularidade discursiva apreendida, associada ao agronegócio. O “alimento”, seu principal produto material, torna-se componente inquestionável, sacralizado e posto como símbolo.

Peço saudações aos homens do agro. Minhas saudações aos produtores. Eu cunhei uma frase que é bom pra vocês guardarem na mente. O produtor é a base da vida. Não existe vida sem alimento. Os senhores precisam enfiar na cabecinha que os senhores são a base da vida de qualquer país e de qualquer planeta. Se os senhores não produzirem, não tem comida e não tem vida (fala de um interlocutor na feira Agrobrasília, 2019).

Parece ser razoável assumir que daí forja-se prioridade para a agricultura em larga escala, particularmente em relação ao uso da terra e da água. Mas, em paralelo, o agronegócio adquire o status de caridade e benevolência para com o mundo – afinal também se geram empregos, particularmente aos residentes dos ‘vãos’ e ‘peões’, que, nessa condição, passam a “existir”. Trata-se da construção social de um sentido existencial para a sociedade do agronegócio ali. A produção de “alimentos”, no caso via a agricultura irrigada do Pi-place, emerge de uma espécie de campanha da fraternidade de longa duração, essencial a uma humanidade degradada, sem empregos e sem renda. Também a agricultura passa a figurar como significante, ao passo que sustentabilidade, desenvolvimento e benevolência compõem seu conjunto de signos edificantes. Esse encadeamento aparece enraizado junto a agentes diversos do agronegócio no Pi-place (técnicos, produtores rurais, gerentes de empresas, estudantes etc., e pessoas a estes ligadas) e reverbera em suas formas de conceber e dividir o mundo.

Por fim, o “legalismo” encerra analiticamente nossa tentativa de construção de um quadro de regularidades discursivas entre os agentes do agronegócio no contexto do Pi-place, pois nos informa a respeito de suas concepções também enviesadas sobre a lei ambiental. Em suas narrativas sobre a agricultura, sobre o uso da água e sobre a regularidade do agronegócio, recorre-se insistentemente à conformidade das múltiplas licenças ambientais, às outorgas de água e ao cumprimento da legislação trabalhista. Está em cena, nesse universo, um verdadeiro fetichismo aos papéis apinhados nas gavetas dos arquivos, conquistados a partir de árduo esforço para manterem-se sob a lei (repare-se aqui apenas que as leis não deixam de ser questionadas e alteradas por esses agentes, particularmente aquelas impeditivas da expansão do agronegócio)10. Se, por um lado, identifica-se em jogo um movimento de persuasão discursiva em torno da lei, relacionada a se abrir caminho à agricultura irrigada, por outro lado, o legalismo sedimenta-se como valor, por mais excludente que isto possa ser, particularmente dos agentes opositores dos ‘vãos’, que demonstram mais dificuldade em cumpri-la ou fazê-la ser cumprida. Há que se estar, sobretudo, regular perante os preceitos técnicos e jurídicos, independentemente do que isso venha a significar. É por esta razão que, a todo momento, esses agentes recorrem às ideais de regularização, de registro, de conformidade às normas e leis vigentes, afinal parece ser dessa forma que o mundo deve ser organizado.11 O legalismo (ingênuo, malicioso ou simplesmente empreendido em um sentido prático) é o critério maior de conformidade e de garantia da sustentabilidade, da benevolência para com o mundo e da operação de uma racionalidade que condecora o valor de troca da natureza.

Todo esse encadeamento discursivo, em que se operam “rebaixamentos sociais”, “refutações da crítica”, “ciência como crença”, “instrumentalização da natureza”, “sacralidade e benevolência” e “legalismo”, indubitavelmente, está a serviço da legitimação do agronegócio no plano societário,12 e, assim, de sua expansão territorial, mental e econômica. Parece não ser novidade observar-se em jogo um processo de naturalização de práticas de poder (Porto, 2014, pp. 41-43), em que se produz efeitos de verdade sobre a realidade. Tal como notou Boltanski e Chiavello (2009, p. 42), em um processo de justificação não é necessária apenas coerência lógica para dar sentido à expansão e à colonização, é preciso também que isto se dê na esfera moral e dos costumes, mobilizando crenças e padrões de conduta a serem normalizados.

Sob outro ângulo, entretanto, não se pode perder de vista o efeito ao qual chamamos a atenção aqui: a conformação, nesse ínterim, de um grupo particular, a princípio integrante da sociedade do agronegócio posta por Heredia, Palmeira e Leite (2010). Se nos processos de legitimação (Porto, 2014), de justificação (Boltanski & Chiavello, 2009; Boltanski 2013) ou de concertação do agronegócio (Pompeia, 2018) irradia-se mensagens à sociedade como um todo e aciona-se um sentido englobante, totalizante, produz-se, concomitantemente, efeitos internos ao agrupamento de agentes do agronegócio, atribuindo-se coerência a sua ação enquanto grupo particular. Esses contornos ficam ainda mais evidentes quando se põe luz na conformação de um éthos associado a tal grupo, constituído não apenas por uma camada enunciativa – ou o que tais agentes “dizem” –, mas também entreposto por inserções de imagens de um tipo/modo a se seguir, ou seja, como eles “se mostram”. Exploraremos este ponto na seção a seguir.

3. Imagens do agronegócio: os homens de camisa azul

Se os agentes do agronegócio no Pi-place privilegiam os elementos discursivos explorados acima para comporem suas narrativas acerca do “outro”, “da natureza”, e, também, para ajustarem a realidade ao seu modo de ver as coisas, são estes mesmos agentes que se personificam enquanto “homens de camisa azul”, o expoente imagético que abordaremos nesta seção. O “homem de camisa azul” é um termo cunhado por nós para fazer referência a uma espécie de protótipo que se forjou e é operado no Pi-place. Tal modelo – uma espécie de “tipo social” – é um produtor rural de pele clara, vestindo uma camisa azul (também clara) e pilotando uma caminhonete branca, ambos posicionados à frente de uma imensa lavoura verde e resplandecente. Ele representa parte de uma realidade encenada pela sociedade do agronegócio e, sendo um modelo, é também um conjunto de mensagens circulantes, a partir do qual orientam-se modos de se vestir, de se deslocar e de se ocupar o espaço no Pi-place. Enfim, o mundo parece ser habitado por eles seguindo-se o referencial da camisa azul, por sua vez, um importante símbolo que, como tal, tem seus significados correspondentes, extrapolando, evidentemente, um simples modo de se vestir. Este não deixa de ser, ao mesmo tempo, um rótulo, um elemento distintivo e uma marca identitária.

A “camisa azul”, por sua vez, molda esse homem socialmente fabricado como representação simbólica do fazendeiro arrojado, bem-sucedido e tecnologicamente atualizado para o mundo contemporâneo. Embora trate-se de um modelo, ele ancora-se no real, à medida em que transitam no Pi-place, de fato, homens vestindo camisas sociais de cor azul, em geral denotando sua afiliação à sociedade do agronegócio. Ali, entretanto, o agente ideal não é encarnado apenas por fazendeiros (o produtor rural) em um ordenamento purista. Se o fazendeiro é constituído enquanto modelo que condensa valores, práticas e formas de explicar o mundo, este ideal é retomado em uma teia de atores em que participam agentes diversos interligados compondo o mundo13 do agronegócio ali. Trata-se de gerentes de fazendas, prestadores de assistência técnica, gerentes de empresas agroindustriais, vendedores de insumos, máquinas e implementos agrícolas, técnicos dos mais variados (em geral prestando serviços a fazendas e empresas, mas que, por vezes, são agentes de órgãos estatais, como Emater e Embrapa)14, especialistas de associações da sociedade civil voltadas à representação técnica e política do agronegócio (sindicatos rurais, associação de irrigantes, associação de produtores etc.), profissionais diversos ligados à gestão de fazendas e empresas agrícolas e agroindustriais (administradores, agentes de marketing etc.), políticos com interesse na agropecuária (prefeitos, vereadores, secretários municipais de agricultura, deputados estaduais e federais e assessores), pesquisadores, professores e alunos (vinculados a universidades, empresas públicas de pesquisa, institutos federais, colégios agrícolas, que, de formas variadas e com o intermédio de campos de saber como agronomia, veterinária, zootecnia, engenharia agrícola, administração rural, entre outros, ligam-se ao agronegócio do Pi-place). Vê-se aí uma heterogeneidade de agentes imersos na sociedade do agronegócio; não vestem todos esses homens (e mulheres) camisas azuis, tampouco todos possuem caminhonetes brancas ou detêm verdes terras de lavouras, mas espelham-se em um tipo social específico e, por assim dizer, frequentemente encarnam o homem de camisa azul propriamente dito.

No cotidiano do Pi-place, tal tipo social pode ser encontrado em churrascarias15 e restaurantes de destaque, não raro aportando em suas caminhonetes brancas e demonstrando ligação com o agronegócio, seja pela afiliação a alguma empresa agrícola (revelada, em alguns casos, por logomarcas sutilmente estampadas em suas camisas ou veículos) ou pelos assuntos de caráter técnico que os entretêm. Uma vez tomada de empréstimo a ideia de protótipo, os camisas azuis podem ser facilmente reconhecidos, não apenas em restaurantes, mas em eventos ocasionais e no cotidiano de um modo geral, participando de encontros técnicos, feiras agropecuárias e dias de campo, transitando no comércio local, em reuniões de trabalho, festas temáticas, em grandes cooperativas agrícolas, workshops e cursos de formação. Enfim, os camisas azuis habitam ruas, estradas e uma diversidade de situações cotidianas, algo elucidado na Figura 1. Consequentemente, sua presença revelava-se também via mídia e propaganda (em outdoors, cartazes, páginas da web, televisão local), quando eventos e processos do agronegócio são referenciados para um público mais amplo.

Figura 1
Os homens (e mulheres) de camisa azul e suas caminhonetes brancas no Pi-place, 2019
Os homens (e mulheres) de  camisa azul e  suas caminhonetes brancas no Pi-place,  2019
Fonte: a) disponível em: < https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-955502161-dinheiro-rural-minha-terra-minha-vida-JM>; b) disponível em: https://www.dinheirorural.com.br/edicao/edicao-122/; d) disponível em: https://anapa.com.br/romeu-zema-defende-a-renovacao-da-taxa-antidumping-na-abertura-da-8a-fenacampo/; c), f), i), k), l), m), n), o), p) os autores; e) disponível em: https://www.dinheirorural.com.br/chuva-de-lucros/; g) disponível em: http://www.agenciaminas.mg.gov.br/noticia/governador-romeu-zema-entrega-premios-a-cafeicultores-mineiros; h) disponível em: https://radionovafmjp.com.br/noticia/547798/1-feira-agro-noroeste-reforca-protagonismo-do-agronegocio-na-regiao; j) disponível em: https://irriganor.org/2017/10/27/reuniao-com-o-igam/. Acessos em: 06 ago. 2021.Legenda: a) capa da revista Dinheiro Rural com um agente da empresa SLC (uma das grandes do Pi-place); b) capa da revista Dinheiro Rural com um agente no Mato Grosso, sugerindo distribuição espacial para além do Pi-place; c) fazendeiro num bar de trabalhadores rurais; d) governador de Minhas Gerais, Romeu Zema, em articulação com um importante empresário do Pi-place, ao centro; e) Renato Sorgatto, reconhecido produtor rural do Pi-place, na revista Dinheiro Rural; f) caminhonete branca exposta na feira Agrobrasília; g) Romeu Zema em evento de premiação de cafeicultores em Belo Horizonte, sugerindo, uma vez mais, distribuição espacial para além do Pi-place; h) feira Agronoroeste; i) cartaz-propaganda da feira Agrobrasília; j) reunião entre membros do Instituto Mineiro de Gestão de Águas (Igam) e Associação dos Produtores Rurais e Irrigantes do Noroeste de Minas Gerais (Irriganor); k) stand de vendas de implementos agrícolas na Agrobrasília; l) supervisores de silo em um bar após o expediente; m) cartaz-propaganda na feira Agrobrasília; n) outdoor do Banco de Brasília, credor do agronegócio; o) outdoor com propaganda de caminhonete; p) caminhonete branca exposta na Agrobrasília.

Desde os anos 1920 a cor azul foi (e ainda é) amplamente utilizada em diversos contextos fabris mundo afora, como demonstra a literatura sobre o tema (Temkin & Ibarra, 2018; Hur, Chang, Koo & Park, 1996; Wright, Bengtsson & Frankenberg, 1994). Foi nesses ambientes também que o termo blue-collar workers16 apareceu em oposição aos white-collar workers, estes, por sua vez, assumindo postos mais altos na hierarquia do trabalho em fábricas, em geral associados às tarefas gerenciais nos escritórios. Dito isto, e ao que parece, a camisa azul emerge no Pi-place e em outros contextos do agronegócio como uma espécie de citação, consciente ou não, a essa distinção que se dá no contexto fabril mundo afora.

Contudo, é importante notar que, no Pi-place,o branco dessa distinção aparece como azul claro, que é a cor das camisas usadas para se encenar o homem próspero do campo (ver Figura 1), marcando, ao mesmo tempo, uma distinção em relação a outros agentes subalternos que também habitam o Pi-place (‘peões’, trabalhadores dos ‘barracões’, mecânicos etc.). É nessa direção que observamos a tendência de trabalhadores que ocupam os níveis inferiores na hierarquia do trabalho vestirem camisas, camisetas ou macacões de tonalidades mais vivas ou escuras (laranja, verde, vermelho etc.), cores estas que nunca aparecerão diluídas pelo branco. Ou seja, ao invés de o branco contrastar com o azul como ocorre nos contextos fabris, no Pi-place a distinção se dará entre o azul “claro” e quaisquer outras cores chamativas não diluídas pelo branco, algo talvez disfarçado pela praticidade em se vestir cores mais escuras quando se trata de trabalhos “menores”, em que a terra, a graxa e a “sujeira” estão presentes. De certa forma, a imagem que se evidencia neste contexto é a de que os homens de camisa azul claro – em seus escritórios, reuniões empresariais e eventos – são mais “tech” do que “agro”, alterando o sentido original daqueles que efetivamente ‘mexem com a terra’.

Algo que embaralha a análise, entretanto, é o fato de ocorrer, em paralelo, um movimento de simulacro, empreendido particularmente por ‘peões’ (mas também por outros trabalhadores posicionados abaixo na hierarquia do trabalho no Pi-place). Esses agentes também vestem camisas azuis, não exatamente no contexto do trabalho, mas para posar para fotos que são frequentemente circuladas nas redes sociais e/ou como imagem de perfil do aplicativo WhatsApp. Nesse sentido, é emblemática a alteração empreendida pelos ‘peões’, uma vez que a cor do azul aparece frequentemente alterada (passam a ser de tonalidade mais escura), são acrescentados óculos escuros, modificados os cenários de fundo, desempenhadas poses arrojadas etc. Ou seja, trata-se de agentes envolvidos no agronegócio, porém não exatamente pertencentes ao seu mundo. É nessa direção também que as ideias de simulacro e imitatio exploradas por Paula (2001, pp. 36-27) são reveladoras, particularmente quando a autora nos informa sobre a ressignificação do country e sobre o estranhamento de estadunidenses (de certa forma “inventores” desse estilo) quando percebem sua reelaboração no interior de São Paulo. No caso da camisa azul do Pi-place, ela aparece sendo grosseiramente alterada por determinados agentes. O grosseiro, aqui, entretanto, não adjetiva os agentes que alteram, mas evidencia seu desapego aos códigos de um jogo ao qual não podem adentrar.

É assim que os “autênticos” homens de camisa azul do Pi-place aludem, em alguma medida, à diáspora ‘gaúcha’ pelo país, à sua ascensão econômica e social (como proprietários de grandes porções territoriais) e à sua capacidade de estabelecer conexões e tecer alianças na composição de um grupo mais amplo e heterogêneo.17 Desta feita, para além da tonalidade clara da cor azul, é curioso observar a correspondência entre os camisas azuis, na sua grande maioria composto por homens brancos, e o que diz um conhecido manual entre profissionais que se preocupam com a questão da etiqueta empresarial: “cores frias, como azul, verde e lilás combinam melhor com pessoas de pele clara” (Guirao, 2008, p. 93).

Se uma importante matriz do homem de camisa azul é o ‘gaúcho’ proprietário de terras, que ascendeu economicamente aproveitando-se de políticas públicas a ele desenhadas, estes homens, em larga medida, aparecem também como gerentes, técnicos e funcionários de fazendas e empresas agrícolas e agroindustriais. Embora a origem destes agentes-funcionários seja diversa, nota-se que os cargos mais elevados na hierarquia do trabalho nesses empreendimentos são ocupados por ‘gaúchos’ bem-sucedidos, cujas famílias obtiveram sucesso e acúmulo financeiro com a agricultura, seja esta realizada no Pi-place ou alhures. Em paralelo a isto, considerando-se que processos de transnacionalização e financeirização da agricultura (Oliveira & Bühler, 2016; Sauer & Castro, 2020) vêm alterando e ofuscando rostos e corpos dos que são detentores da terra e da água, os donos dos empreendimentos agroindustriais no Pi-place vêm deixando de ser os ‘gaúchos’. Temos, então, que o mecanismo de reprodução social destes agentes já não conta (ao menos não com a mesma intensidade) com a sucessão a partir da transferência patrimonial de terras ou com a sua aquisição para, assim, constituírem-se novos proprietário de terras ‘gaúchos’. A exemplo das empresas multinacionais, estão em jogo, nesses tempos mais recentes, novos interessados nessa apropriação, num cenário particular em que já não há mais terras a serem abertas.

Ao passo que ‘gaúchos’ vão ocupando posições de destaque enquanto técnicos, gerentes e mediadores, a expansão do agronegócio tende a se proliferar a partir do estatuto de suas empresas, que, em última instância, aparecem como resposta ao aumento da produtividade via a irrigação. Os filhos desses personagens de destaque no meio agroindustrial – assim como o jovem que acompanha o “homem de camisa azul” da peça publicitária que introduz este artigo – vêm se constituindo como profissionais do agronegócio formados em cursos cada vez mais tecnicistas e especializados nas universidades e sendo atualizados por valores e tendências do mundo contemporâneo. Se um dos desdobramentos disso parece ter sido a própria emergência dos camisas azuis, no Pi-place estes agentes já não vivem apenas no campo como anteriormente em suas propriedades rurais, mas residem agora também nas sedes de municípios como Unaí (Minas Gerais) e Cristalina (Goiás), além de na imensa Brasília, de onde valem-se de suas caminhonetes para gerenciarem uma infinidade de empreendimentos multissetoriais.

Tal qual o produtor rural, o técnico ou gerente bem-sucedido serve de inspiração à constituição da sociedade camisa azul no Pi-place, produzindo, assim, efeito de espelhamento social. Ao mesmo tempo, há em jogo uma curiosa hierarquia da camisa azul e uma espécie de rede de espelhamento e ressignificação, por meio da qual são socializados valores, códigos e conceitos sobre o mundo. É importante notar que o técnico-gerente de destaque demonstra apreço ao enriquecimento por meio das lavouras (similar àquele do produtor rural, mas agora em termos de eficiência gerencial), exalta as tecnologias (localmente incorporada na figura dos pivôs centrais), formula descrições monetarizadas das coisas e do mundo, valoriza os ambientes controlados, funcionais e esteticamente planificados, e, tal qual o produtor rural, têm na família um valor fundante, para além do conjunto de valores e visões expostas na seção anterior. Pontos relevantes a serem balizados no campo tanto da semântica dos enunciados, como da presença das imagens e símbolos, assim como temos argumentado, visto que suas concatenações se fazem presentes também em outros setores em ascensão na sociedade brasileira, como certas ramificações da Igreja Evangélica, do empresariado e outras categorias do conservadorismo de plano moral e estético no país.

Por outro lado, em sendo esse conjunto de referências socializado entre os demais agentes locais (para além do técnico-gerente de destaque), estes últimos não deixam de ajustá-lo às suas respectivas condições sociais e materiais. Aqueles que ocupam posição inferior na hierarquia do trabalho, não sendo tão privilegiados por redes ‘gaúchas’ de parentesco, tampouco sendo tão bem remunerados, projetam expectativas diferentes em relação ao trabalho, particularmente pela ênfase que dão à eficiência técnico-gerencial. Mostram-se em constante busca por cursos de especialização, em especial os de caráter instrumental, voltados às técnicas agrícolas, de gestão, de administração, em um esforço de assegurar o cargo num mercado concorrencial e de, eventualmente, ascender na carreira. São também movidos pelo sonho em trabalhar nas grandes empresas (as ‘gigantes’), sonho este, em parte, forjado já nas escolas técnicas e universidades. Assim, quando adentram as empresas, estes trabalhadores (incorporados enquanto homens de camisa azul) demonstram verdadeiro afã pela ascensão na hierarquia do trabalho, projeto este que, se for alcançado, será via a eficiência técnico-gerencial (é recorrente, nesse sentido, vê-los gabando-se por executar tarefas que outrora eram realizadas por dois ou três funcionários). Em paralelo a esse afã, aparece o desejo pelas viagens internacionais, e as estatuetas e fotografias em seus escritórios de trabalho (ou mesmo em seus perfis de WhatsApp), referenciando-as, sugere, assim, a produção de certa distinção social a partir delas.

A caminhonete branca, apontada no início da seção, também é um importante (e enigmático) marcador de prestígio social no Pi-place. O forasteiro que percorre seus municípios, viajando por rodovias e estradas de terra (tantas vezes vazias de gente, mas cercadas por pivôs centrais) pode perceber esses veículos movimentando-se velozmente por ali. Tais quais os pivôs centrais, as caminhonetes brancas são objetos de destaque e sucesso (para quem as detêm), ao passo que constituem unidades referenciais de locomoção (ver Figura 1), assim como a camisa azul opera em relação à vestimenta.18 Ela compõe o protótipo do homem de camisa azul e sua imagem parece participar na projeção de um ideal a ser perseguido, cujos caminhos para se chegar lá são inspirados pelos valores “camisas azuis” (que insuflam um dado olhar sobre o mundo, conforme exposto aqui e na seção anterior). De outro modo, a caminhonete branca subentende uma reiteração coerciva, ainda que simbolicamente, afinal sua circulação entre os camisas azuis faz com que ela se torne objeto de desejo, de consumo, e, em certos casos, de prazer e ostentação (isto pode ser apreendido também a partir da Figura 1, em que se demonstra a construção de certa veneração para com a caminhonete branca, por meio de outdoors espalhados pelo Pi-place e em stands de feiras agropecuárias).

É importante notar aqui, entretanto, que não é apenas o veículo robusto objeto de ostentação que está em jogo e que, assim como a camisa azul, a questão da cor não pode passar despercebida. Sabe-se que o branco é a cor mais módica impressa em veículos comerciais, algo perseguido no âmbito dos negócios de uma forma geral, em sentido tal que o “máximo” é sempre alcançado pelo “mínimo”. Desta feita, por um lado, importa sobretudo colocar o veículo em cena, possuí-lo, ainda que de forma “econômica”. Por outro lado, se o branco parece ter sido um feito negocial a partir de seu custo relativamente mais baixo, em paralelo ele emerge como signo de eficiência, remetendo aos ambientes de negócio e às empresas, também representando utilidade e pragmatismo, valores estes que, invariavelmente, são sincrônicos ao espírito do agro(negócio). As camisas azuis, a caminhonete branca e a lavoura monocromaticamente verde (esta constituindo signo de fartura, acúmulo e eficiência em tons de natureza tecnicizada) têm como efeito distinguir quem as exibe ou as detém das “pessoas comuns”, ao mesmo tempo em que ajudam a reforçar a produção de um cotidiano a ser habitado: o mundo comum do agronegócio, com suas idiossincrasias (estas não são meros detalhes).

A gradação hierárquica entre os diversos agentes no Pi-place pode ser apreendida por amálgamas que permitem uma espécie de transfiguração inclusiva entre diversos agentes do agronegócio em escala regional, permitindo agora coexistirem num mesmo estatuto de homem de camisa azul o moderno produtor rural, o gerente, o encarregado, o técnico, o vendedor, o aluno, enfim... Há, inclusive, espaço para a incorporação do pequeno agricultor (em outro momento posto como agente opositor), que parece ficar credenciado ao mundo do agronegócio, particularmente quando a categoria ‘agricultor’ passa a adjetivar também o grande produtor. Como se percebe, está em jogo uma hiperpolissemia, unindo diversos sentidos de ruralidade; no mundo holográfico que se desdobra, desde o empresário rural até o camponês podem participar de uma mesma síntese.

Por fim, outra perspectiva da heterogeneidade social detrás da camisa azul é revelada pela participação de agentes nativos da área onde hoje é o Pi-place (nomeadamente os ‘goianos’), que adentraram (ou mesmo foram cooptados) a dinâmica produtiva do agronegócio, tanto pelo estabelecimento de alianças com ‘gaúchos’ (construídas lentamente, desde a sua chegada ali em meados da década de 1970), como pela ascensão via os estudos e a profissionalização. Ocupando uma hierarquia mais baixa, frequentemente ‘goianos’ fazem a intermediação entre ‘gaúchos’ gerentes bem-sucedidos e ‘peões’,19 tarefa gerencial-organizativa que, ao mesmo tempo, faz com que quem a realize preencha o vazio e a falta de interlocução entre os extremos da hierarquia de trabalho. Concomitantemente, para além do posto e do tipo de trabalho ocupados, os ‘goianos’ têm, em geral, locais de residência, origens, condições materiais e valores que os distinguem marcantemente tanto de ‘peões’ migrantes quanto dos grandes gerentes. Apesar disso, ‘goianos’ aparecem ainda dentro da trama local (nela aparecem concorrendo, ainda que assimetricamente, ao passo que a todo tempo referenciam seus atores, incluindo-se eles próprios), diferentemente de ‘peões’, que, embora sejam influenciados por signos e valores da sociedade do agronegócio (como a própria camisa azul), não conseguem ou não desejam adentrá-la, porque, como vimos, são estigmatizados e para com eles é estabelecida uma verdadeira fronteira social.

Se as fronteiras (frequentemente porosas) constituídas no cenário do Pi-place demarcam diferenciação – seja pelos discursos e narrativas relacionadas a temas como trabalho, produção e meio ambiente, seja pelas próprias camisas azuis – em relação a outros grupos e pessoas, que, inadvertidamente, não podem, resistem ou não se interessam em participar do mundo do agronegócio ali, há também importantes distinções internas aos camisas azuis.20 É interessante notar que a operação desses signos instaura uma concorrência interna, que, ao contrário de ameaçar a coalizão estabelecida, se constitui como mais um elemento ligante entre os que podem participar da trama.

Múltiplas facetas desdobram-se do homem de camisa azul, contudo, a mais emblemática delas é aquela em que este aparece como uma mimetização simbólica e estratégica, de viés pragmático da existência das atividades do agronegócio objetivando desde a condução da “produção em si” (da fazenda e da agroindústria) até a “produção de si”, ou seja, da “produção do sujeito” com identidade e coesão de grupo. O homem de camisa azul imanta, como apresentou nossa análise, um tipo muito peculiar de agente mediador entre interesses locais, a coalizão de grandes produtores rurais e as esferas mais diversas da sociedade como um todo, especialmente no que se refere à estratégica defesa e representação das práticas produtivas de uma sociedade particular (conforme problematizado na seção anterior) e a consequente agência de seus atores no que tange à expansão territorial desses empreendimentos. É em sentido correlativo que Bruno (2012, pp. 9-10) faz referência aos porta-vozes do “movimento Sou Agro”, em realidade “jovens executivos, a maioria na faixa de quarenta anos, muitos com pós-graduação e parte de uma extensa e rica rede de associações e organizações não-governamentais”. Essas facetas, porém, multiplicam-se para além dessas figuras, preenchendo uma lista extensa e heterogênea de atores, envolvendo funções e hierarquias diversas.

Considerações finais

Ao caracterizar alguns dos “atributos sociais” (Heredia, Palmeira & Leite, 2010) resultantes em uma escala hologramática da sociedade do agronegócio no Pi-place, o trabalho aqui apresentado permitiu evidenciar determinadas operações naturalizadoras destinadas a positivar tal universo da produção agrícola e agroindustrial brasileira. Tendo como foco dimensões sociais, culturais, simbólicas e ritualísticas do “agro” no cotidiano de uma realidade etnográfica específica, vimos como refletidos elementos balizados por construtos enunciativos e de materialidade imagética no modo de se exprimir se mostrar e se viver em sociedade.

Enquanto metáfora dos interesses e resultados da expansão da agroindústria em larga escala no país, o espaço dos discursos e práticas vivenciadas no território pesquisado pode ser representado como um grande “pivô central” imantado de ressignificações para a sociedade do agronegócio, várias delas esmiuçadas ao longo desse artigo. Da coalizão de atores do agronegócio vimos engendrar um simbolismo comum para a atualização de valores sociais, tanto “para dentro” da coalizão como “para fora” de sua sociedade. Assim como os próprios pivôs de irrigação com seus braços que gravitam a partir de um ponto fixo central, as mensagens, gestos, posturas e narrativas vindas do grupo social analisado irradiam de forma circulante e persuasiva para sua construção discursiva. Se as tecnologias de irrigação operam por movimentos centrípetos, as mensagens enunciadas pelos agentes também circulam “para dentro”, em uma chave autopoiética, tendo como referência a constituição de um grupo social particular, que conforma identidades, cria rituais (assunto que pretendemos nos debruçar em artigo posterior), molda valores, forja e opera símbolos e traços comuns. Por outro lado, tais mensagens se fortalecem na medida em que o movimento ganha tração e consegue se expandir “para fora” de seu próprio eixo, como se os motores e as rodas de sua estrutura se deslocassem, replicando, além da água sugada do subsolo, uma linguagem de mundo (mais do que nunca monocultural), como numa linha de produção em movimento centrífugo, em busca da adesão de novos adeptos. Trata-se de manobra estratégica, sim, mas que encerra por nutrir mudanças sociais e culturais – sendo as repercussões do slogan “Agro é Pop” no país emblemáticas, assim como a emergência e socialização de uma cosmologia agro (Gerhardt, 2021).

Como pudemos nos debruçar neste artigo, as transformações que perpassam daí acionam operações discursivas, imagéticas e simbólicas que mobilizam o caráter de renovação estético-político do “agro”, legitimados por posicionamentos discursivos e por um mar de caminhonetes suntuosas, tratores, lavouras verdes e um arsenal de “homens de camisa azul”. Nada mais natural do que, nos entremeios da maior crise sanitária em escala global que pudemos assistir recentemente, o salvador “agro” fosse mais uma vez convocado a carregar o Brasil nas costas, como nos anuncia outro comercial, mais recente, também vinculado à venda de uma caminhonete, dessa vez a Ford Ranger. “Mais que o motor” da nação, diz a campanha, o “agro” continua trabalhando cada vez mais e com “mais tecnologia e inovação”, sendo o coração que “pulsa e é vital para manter nosso país de pé, mesmo durante tempos difíceis”.

Se a opinião pública é a forma moderna de “aclamação” dos sistemas de poder, como sugere Agamben (2011), a “sociedade do espetáculo do agronegócio” –utilizando aqui uma licença poética da bela construção teórica de Debord (1997) – é transfigurada como marca de suas conquistas discursivas, conduzida por uma imensa dominação narrativa de vários aspectos da vida social. Nada mais evidente, então, como tentamos revelar aqui, que a espantosa concentração e multiplicação da “glória” do agronegócio passe pelas esferas da liturgia e do cerimonial de formas comunicativas internas e externas em relação ao seu universo social.

Referências

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Notas

1 Categoria formulada pelos autores, no decorrer de etnografia.
2 Empregamos aspas simples (‘’) para designar categorias êmicas ou termos locais, aspas duplas (“”) ora para indicar citações na íntegra, ora para os termos que merecem relativização, ora como recurso de destaque e itálico para palavras em língua estrangeira.
3 É importante ter em conta o que apontam Sauer e Castro (2020) acerca dessa categoria. Para eles (perspectiva, aliás, que compartilhamos), “o termo agronegócio foi convertido em um conceito síntese (para além de uma categoria empírica), resultante do processo de construção política como expressão de identidade social” (p. 10, tradução nossa).
4 Nota-se que parte do êxodo rural desde 1960 decorreu-se justamente do fato de pequenos agricultores não terem conseguido, em geral, mobilizar recursos suficientes para implementar as mudanças técnicas (e de escala) que o novo modelo exigia. Nesse sentido, ver, por exemplo, Silva (1982).
5 Ao contrário da agropecuária, o agronegócio é necessariamente intersetorial, sendo influenciado amplamente por agentes secundários e terciários da economia. Entretanto, como será detalhado no início da quarta seção deste artigo, os agentes desvelados na presente etnografia estão especialmente ligados à agricultura propriamente dita, às unidades de processamento em seu entorno, aos serviços a estes associados e às representações e mediações que lhes são decorrentes. Apesar de não ter sido o foco principal do trabalho etnográfico desenvolvido, outros agentes industriais e financeiros também compõem a “sociedade” aqui abordada, evidenciando a relevância de sua trama intersetorial.
6 Para que o leitor possa ter uma dimensão da significância dessa área em termos produtivos, identificamos, associados unicamente aos hortifrutigranjeiros, aproximadamente 17.000 trabalhadores rurais, sendo a maioria constituída por migrantes de vários estados do Nordeste brasileiro. Para acessar a dinâmica desse processo e a relação entre nordestinos e ‘gaúchos’, ver Meyer (2021).
7 O pivô central de irrigação é um braço mecânico que gira a partir de um ponto fixo central, irrigando uma área circular. No Pi-place, em geral, esses braços medem 550 metros, irrigando um círculo cujo diâmetro é 1100 metros e cuja área compreende 95 hectares.
8 Pompeia (2018, p. 12), analisando tal discurso do agronegócio, também identificou a categoria “seletividade”. Para ele, a seletividade opera em duas direções, na de inclusões (“fazer aparecer que a concertação abrange mais agentes em relação aos que representa na realidade”) e na de exclusões (“eliminar determinados atores que (...) não convêm à narrativa”).
9 Nota-se, no Pi-place, a ocorrência de diversos eventos (rituais) técnico-científicos, distribuídos ao longo do ano, em que são convidados produtores rurais, agentes governamentais, políticos, gerentes de empresas, técnicos diversos, estudantes de ciências agrárias etc. para “problematizar” questões técnicas relacionadas à agricultura de larga escala.
10 Nota-se aqui que os agentes do agronegócio exercem movimento incessante no sentido de produzir leis que flexibilizam a prática agrícola em moldes apropriadores da natureza. Para isso, ver Silva, Souza, Eloy e Passos (2019).
11 É possível, então, fazer uma analogia com a persuasão em torno da ideia de sustentabilidade, que foi “abocanhada” pelos agentes do agronegócio, com tal força que parecem não conseguir mais livrar-se dela.
12 Outros elementos ainda poderiam ser explorados nesse sentido – a disputa semântica em torno da sustentabilidade, força associativa enquanto valor, a apropriação e ressignificação de signos do povo dos ‘vãos’ etc.
13 Aliás, o “mundo do agronegócio” não é um termo só nosso. É acionado também por agentes da mídia e da esfera pública em torno do Pi-place. Ver, por exemplo, https://triangulonoticias.com/fenamilho-contara-com-feira-de-agronegocios/.
14 Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater); Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
15 Ironicamente, a União Democrática Ruralista foi forjada em uma churrascaria, denotando o apreço de agentes do agronegócio, já em sua gênese “societária”, por este tipo de ambiente. “No dia 17 de maio de 1986, na churrascaria do Parque Agropecuário de Redenção, no estado do Pará, reuniram-se em Assembleia Geral os proprietários rurais (...) com o objetivo de constituírem uma sociedade civil sem fins lucrativos sob a denominação de União Democrática Ruralista – UDR – no estado do Pará, tendo como objetivo a defesa e o aperfeiçoamento da propriedade e da produção agropecuária brasileira” (Fernandes, 1999, p. 111).
16 Este é o caso no Pi-place, particularmente em relação aos trabalhadores dos ‘barracões’, estas infraestruturas onde se dá a classificação ou o processamento de alguns hortifrutigranjeiros ali produzidos. No contexto brasileiro os blue-collar workers são frequente e pejorativamente nomeados como os ‘chão de fábrica’, o que ocorre também no Pi-place, particularmente em relação aos trabalhadores dos ‘barracões’ (locais em que são processados hortifrutigranjeiros como tomates e ervilhas, entre outros).
17 Reitera-se aqui a ideia dos diferentes percursos sociais (posta na introdução) que estão por trás desse homem de camisa azul. Com isso, não estamos nos restringindo somente à categoria ‘gaúchos’, embora seus representantes se destaquem no Pi-place, inclusive numericamente.
18 Vale acrescentar que o pivô central também constitui unidade referencial no Pi-place, de produção, tanto em relação aos hortifrutigranjeiros como às demais culturas principais (soja, milho, feijão e café).
19 Pode-se incluir aqui os trabalhadores dos ‘barracões’, que ocupam uma hierarquia tão ou mais baixa quanto a dos ‘peões’. Para detalhes disso, incluindo a posição dos ‘goianos’, verMeyer (2021).
20 Dentre elas, destacam-se a quantidade de fazendas e hectares de terras que possuem ou dominam, a hierarquia do posto gerencial que ocupam e a destreza técnica adquirida. Mas a indicação distintiva mais eminente parece ser o número de pivôs centrais acumulado por alguém, o qual constitui valor referencial de grandeza, prestígio e status social.

Recepción: 09 Septiembre 2021

Aprobación: 05 Mayo 2022

Publicación: 26 Junio 2022

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