Mundo Agrario, agosto - noviembre 2023, vol. 24, núm. 56, e217. ISSN 1515-5994
Universidad Nacional de La Plata
Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación
Centro de Historia Argentina y Americana

Artículos

Crimes mal-ditos: estupros de crianças e adolescentes nas zonas rurais de Alagoas (Brasil)

Fillipi Lúcio Nascimento

Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
Cita sugerida: Nascimento, F. L. (2023). Crimes mal-ditos: estupros de crianças e adolescentes nas zonas rurais de Alagoas (Brasil). Mundo Agrario, 24(56), e217. https://doi.org/10.24215/15155994e217

Resumo: O artigo examina descritivamente 238 casos de estupro de menores em áreas rurais do estado de Alagoas (Brasil), com o objetivo de identificar os contextos de maior incidência dos crimes, a relação entre vítimas e agressores e seus perfis sociais. A partir de dados obtidos de estatísticas criminais oficiais, boletins de ocorrência e diários de campo, observou-se que: a maioria das vítimas eram meninas; os agressores eram homens adultos solteiros, geralmente familiares ou conhecidos das vítimas; a oferta de dinheiro foi a tática de aliciamento mais comum; os casos ocorriam com maior frequência à tarde e à noite.

Palavras-chave: Estupros, Crianças, Adolescentes, Rural, Alagoas.

“Don’t tell your mother”: sexual abuse of children in rural Alagoas (Brazil)

Abstract: The article descriptively examines 238 cases of child rape in rural areas of the state of Alagoas (Brazil), aiming to identify the contexts of highest crime incidence, the relationship between victims and perpetrators, and their social profiles. From data obtained from official criminal statistics, incident reports, and field diaries, it was observed that: the majority of victims were girls; the perpetrators were single adult men, often relatives or acquaintances of the victims; offering money was the most common grooming tactic; cases occurred most frequently in the afternoon and evening.

Keywords: Rape, Children, Rural, Alagoas, Brazil.

1. Introdução

A violência sexual contra crianças e adolescentes é motivo de preocupação crescente em todo o mundo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, somente no ano de 2017, cerca de 150 milhões de meninas e 73 milhões de meninos com menos de 18 anos de idade sofreram um intercurso sexual forçado ou outra forma de violência sexual envolvendo contato físico (Organização Mundial da Saúde, 2017). No Brasil, a escalada dos casos de estupro1 e de estupro de vulnerável2 tem ressaltado a necessidade de um olhar mais aprofundado e sistemático sobre essas ocorrências. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública ([FBSP], 2021a, 2016), entre os anos de 2015 e 2020 observou-se no país um aumento de assombrosos 203 % nos casos de violência sexual, dos quais 70,5 % foram registrados como estupro de vulnerável.

Em que pesem os avanços inaugurados pela Lei n.º 13.718, de 25 de setembro de 2018 (que alterou o Código Penal brasileiro para tipificar os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro e tornar pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, além de dar outras providências) não houve nos últimos anos proposições efetivas de medidas governamentais voltadas para prevenção da violência sexual contra crianças e adolescentes. Some-se a isso a carência de dados minimamente consistentes sobre essas ocorrências, algo que se deve ao fato de o estupro ser uma das formas de violência menos reportadas às autoridades (Nascimento da Silva, 2021).

No estado de Alagoas, como em outros estados brasileiros, obter dados confiáveis sobre os casos de estupro, tanto de vítimas infanto-juvenis quanto de vítimas adultas, é algo difícil em razão do estigma social e da cultura de culpa e vergonha que dificulta a denúncia e o consequente registro e apuração dessas ocorrências. No entanto, há indícios de que esse é um problema generalizado: somente nos meses de junho, julho e agosto de 2022, mais de 360 casos de estupro e tentativas de estupro de menores de 14 anos foram relatados em Alagoas pela Vital Strategies, uma ONG que atua no combate à violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil e no mundo (Nascimento da Silva, 2021). Trata-se de um número seis vezes maior que a estatística oficial acumulada do estado para esse tipo de ocorrência no ano de 2021 (FBSP, 2021b).

Além dos impactos severos que a experiência do estupro tem sobre o crescimento e desenvolvimento cognitivo das vítimas, a estigmatização por elas experimentada constitui uma outra forma de vitimização. Convenções sociais locais reiteram a necessidade de ocultar “as fontes da vergonha”, o que quer dizer que aqueles que são apanhados em algum episódio de violência sexual (sejam eles crianças ou adultos) são coagidos a manter o silêncio não apenas por seus agressores, mas também por aqueles que deveriam protegê-los (pais e tutores, por exemplo). Na maioria dos casos, a família da vítima desconhece a necessidade de um ambiente de apoio e do aconselhamento profissional. Como resultado, além do trauma físico e mental vivenciado durante o incidente, a vítima continua a sofrer algum tipo de desordem psíquica ao longo da vida.

Neste artigo proponho uma ampla descrição dos padrões e das particularidades identificadas em casos de estupro de crianças e adolescentes em municípios da zona rural de Alagoas. Mais especificamente, busco identificar os contextos de maior incidência dos casos, a relação das vítimas com os agressores e o perfil social de ambos. O estudo adquire relevância na medida em que lança luzes sobre aspectos pouco explorados das especificidades das zonas rurais, discutindo as condições de incidência de crimes sexuais nessas localidades.

O estudo também reserva potencial para contribuir não apenas com a literatura especializada nacional, mas também para o desenvolvimento de estratégias de prevenção e combate aos crimes de estupro contra crianças e adolescentes no estado. Para além desta introdução, outras 4 seções dão forma ao artigo, cada uma reservada para: I) a contextualização teórica do objeto de estudo; II) a descrição da metodologia aplicada; III) a apresentação dos resultados obtidos, e IV) uma sumarização das principais tendências e particularidades observadas e considerações finais.

2. Crimes sexuais em áreas rurais: contexto teórico da discussão

2.1 Definindo o rural

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) define oficialmente como área ou zona rural o espaço dentro de um município fora de seu perímetro urbano. A definição oficial do IBGE, baseada no critério político-administrativo, é útil para fins estatísticos e de planejamento. No entanto, a complexidade das relações entre as pessoas e o espaço que ocupam requer uma compreensão mais matizada do que é o rural.

A definição de rural é um tópico de amplo debate entre acadêmicos de diferentes disciplinas. Na geografia, particularmente, uma definição do rural pressupõe uma discussão sobre a noção de ruralidade, que, por sua vez, não se atém aos limites geográficos. Ela engloba uma variedade de práticas socioeconômicas, culturais e espaciais que são condicionadas por diferentes fatores.

Não podemos falar de ruralidade sem considerar o conceito de territorialidade, o qual, segundo o geógrafo Rogério Haesbaert (2007), se refere à maneira como os indivíduos ou grupos se relacionam com o espaço geográfico, organizando-o e atribuindo-lhe significados e valores. A interação entre a territorialidade e a ruralidade serve na compreensão de como os espaços rurais são formados, utilizados e transformados.

No Brasil, um país de dimensões continentais com uma enorme diversidade geográfica, a ruralidade assume diversas formas. Observemos, por exemplo, a relação intrínseca dos povos indígenas com a terra. Nesse contexto, a ruralidade não se refere apenas aos locais onde esses povos vivem, mas também às suas práticas culturais, espirituais e de subsistência, que são profundamente entrelaçadas com o território. A luta dos povos indígenas pela demarcação de terras e a preservação de suas culturas e modos de vida reflete uma forma de territorialidade que é fundamental para a sua concepção de ruralidade (Silva, 2018).

As grandes fazendas monoculturais que dominam boa parte do Centro-Oeste brasileiro representam outra manifestação de ruralidade. Aqui, a ruralidade está vinculada a uma forma de territorialidade focada na produção agrícola em larga escala. O uso intensivo de tecnologia, a monocultura e a produção voltada para a exportação são características que definem esses espaços rurais. Nesse caso, a ruralidade está intimamente ligada à economia globalizada, com suas dinâmicas de mercado influenciando diretamente a organização e a gestão do espaço rural (Abramovay, 2000).

Podemos também considerar um tipo de ruralidade expresso nas pequenas propriedades familiares espalhadas por todo o país, sobretudo na região Sul. Nestas áreas, a ruralidade é marcada pelo cultivo diversificado, pelo manejo sustentável dos recursos naturais e pela integração entre a vida familiar e a produção agropecuária. Essas práticas refletem uma forma de territorialidade na qual a relação com a terra é moldada por uma combinação de fatores econômicos, sociais e ambientais (Wanderley, 2000).

Da mesma forma, é importante mencionar as comunidades quilombolas e os assentamentos de reforma agrária, cuja ruralidade está intrinsecamente ligada a questões de direitos à terra, resistência e preservação da cultura e da biodiversidade. Nesses casos, a territorialidade se manifesta na luta pela terra e na construção de modos de vida e produção baseados na solidariedade, na sustentabilidade e na justiça social (Abramovay, 2000; Veiga, 2004).

A análise da ruralidade, portanto, deve considerar não apenas as definições administrativas, mas também as práticas e os processos sociais que ocorrem dentro desses espaços. E mesmo que aquelas definições sejam importantes para determinados propósitos, elas não abrangem totalmente a complexidade e a diversidade das formas de vida rural no Brasil. A gama de práticas, relações e transformações presentes no espaço rural brasileiro torna o debate sobre o que é “rural” um tópico de relevância contínua.

Assim, devido à discussão inesgotável sobre aquilo que se define como rural, neste artigo mobilizo o conceito a partir de um consenso da teoria especializada com relação aos seguintes pontos: I) o rural não é sinônimo de agricultura e é multissetorial, ou seja, envolve múltiplas atividades econômicas e sociais (Wanderley & Nazareth, 2001; Marques, 2002). O rural também é multifuncional, o que quer dizer que tem funções produtivas, ambientais, ecológicas e sociais (Schneider, 2010; Wanderley, 2000). As zonas rurais têm densidades populacionais relativamente baixas e não há isolamento absoluto entre as zonas rurais e os perímetros urbanos. Existem muitas redes comerciais, sociais e institucionais entre as zonas rurais, as cidades e as comunidades vizinhas (Silva, 2001, 1999, 1997; Abramovay, 2000). Assim, o Brasil rural é diverso e não deve ser meramente definido como “qualquer área que não seja urbana”.

2.2 Crimes sexuais em zonas rurais

Vítimas de estupro têm grande dificuldade em relatar o episódio vivenciado, sobretudo quando o agressor é um conhecido. Em comunidades rurais, a propensão para a omissão dessa experiência pode ser reforçada por códigos sociais informais que ditam a privacidade e a manutenção da reputação da vítima ou de sua família. A discussão sobre crimes sexuais em zonas rurais também inclui o debate sobre casos de incesto, que não necessariamente podem ser mais frequentes nas áreas rurais, mas que com referência nessa cultura de anonimato parece ser um elemento provável (Finkelhor, 1978; Bachmann, Moeller & Benett, 1988; Tharinger, Horton & Millea, 1990; Spataro et al., 2004; Hillberg, Hamilton-Giachritsis & Dixon, 2011; Read et al., 2018).

A subnotificação de crimes sexuais é um fato já reconhecido por analistas e acadêmicos. As altas taxas de subnotificação dessas ocorrências dificultam o dimensionamento do problema. Estima-se que o número de casos de crimes sexuais cometidos anualmente no Brasil é 14 vezes maior que aquele que é reportado nos registros anuais oficiais. Autores como Valença, Nascimento e Nardi (2013) afirmam que a subnotificação de crimes sexuais nas áreas rurais pode ser ainda maior. Some-se a isso o fato da baixa densidade populacional e do alto grau de coesão interna das comunidades situadas nas áreas rurais contribuir para a falta de anonimato da vítima.

Tratando-se dos casos de crimes sexuais cometidos por conhecidos, a subnotificação é ainda maior. Em comunidades rurais, que são frequentemente retratadas como lugares onde “todo mundo conhece todo mundo”, a probabilidade de a vítima conhecer seu agressor é muito alta. O nível de “familiaridade” nas zonas rurais repercute sobre a incidência de estupros cometidos por conhecidos da vítima. Nesses cenários é muito provável que ela, ou um amigo ou um familiar seu, conheçam o agressor e mantenham com ele algum tipo de relação de afinidade. Nesses mesmos cenários, a probabilidade de reincidência do crime aumenta em função da regularidade com que a vítima encontra seu agressor (Schraiber, D'Oliveira & França Junior, 2008; Bueno & Lopes, 2018).

Nas áreas rurais os acordos tácitos que ditam o sigilo de problemas pessoais são superestimados. Para os sociólogos Barry Ruback e Kim Ménard (2001) há um clima social que compele as vítimas a omitir as denúncias de crimes sexuais. Esse clima social compreende toda sorte de atitudes sobre as necessidades e a sobrevivência familiar ou individual na convivência com os pares. Um valor vigente em muitas comunidades rurais Brasil afora enfatiza a importância de reputação da família acima da justiça pessoal e até mesmo da integridade física e psíquica individual.

Nesses contextos, demarcados por regulamentos sociais informais que reforçam a desconfiança e o desdém pelo envolvimento externo, a atuação de médicos, psicólogos, assistentes sociais e de outros prestadores de serviços é permeada por desafios. Pesquisadores como Bueno e Lopes (2018) observam que parte da insegurança cultivada entre os residentes de comunidades rurais na relação com aqueles que lhes são “estanhos” está associada a uma espécie de tradição que significa a necessidade de que os problemas individuais devem ser resolvidos no recôndito da privacidade familiar. O acesso a essas densas redes de solidariedade pode ser facilitado pela construção gradual de relações de confiança e disponibilidade com a comunidade.

Em áreas muito isoladas, algumas atitudes coletivas com relação às agressões sexuais podem parecer relativamente aceitáveis. Esse entendimento se deve ao fato de que tudo aquilo que é visto como “normal” ou “aceitável” é, geralmente, aquilo que é enquadrado pela perspectiva da família ou da comunidade a qual pertence o indivíduo que se vale dessa representação. Em alguns casos, o que pode se desenvolver é um certo grau de tolerância intergeracional das características familiares. Por exemplo, em que pese o desconforto, o pavor ou o medo experimentado pela vítima, sua família pode moldar suas reações para aceitá-las como parte da realidade. Em comunidades remotas, no entanto, esse efeito pode ser mais intenso devido à exposição menos frequente às normas sociais mais amplas. O efeito máximo disso é uma espécie de tolerância para a agressão sexual, que pode ou não ser chancelada pelas autoridades locais.

O tamanho e a composição das comunidades rurais também afetam a possibilidade da denúncia da agressão sofrida. Barreiras linguísticas, códigos étnicos ou relações autoritárias incomuns podem condicionar certos comportamentos e posturas sociais. Percepções sobre a aplicação da lei também podem variar significativamente de uma comunidade rural para outra e esse também é um aspecto relevante na justificativa da subnotificação de agressões de natureza sexual. Vemos, portanto, que as comunidades rurais reservam características particulares e configurações sociais que contribuem para uma cultura de omissão e de tolerância dos crimes sexuais.

3. Dados e método

O relato disposto a seguir contextualiza o processo de idealização da pesquisa da qual deriva o presente artigo.

Entre julho e outubro de 2022, tive a oportunidade de atuar no Censo Demográfico de 2020 como agente censitário supervisor, sendo então responsável por coordenar uma equipe de 25 recenseadores no município de Matriz de Camaragibe, zona da Mata Alagoana. Com a conclusão do levantamento dos dados dos setores urbanos em Matriz em meados de agosto, passamos a explorar os setores rurais do município. No primeiro dia de atividade do Censo na zona rural de Matriz fui informado sobre um suposto episódio de violência contra uma criança de nove anos. Um recenseador informou que tinha sido surpreendido com gritos no interior de uma das casas no setor onde realizaria a pesquisa: “A casa estava com as portas e as janelas todas fechadas. Fiquei com medo de ficar por lá porque não tinha outras casas por perto e se eu precisasse de ajuda, não pra onde ir”. Ele disse que, ao bater na porta, percebeu que os gritos foram abafados. Alguns minutos de silêncio se seguiram. “Bati de novo na porta. Fiquei batendo na porta, mas tava com medo. Do nada apareceu um homem sem camisa perguntando quem eu era, o que eu queria”. Ao se apresentar como recenseador do IBGE, recebeu do homem a resposta de que não ele queria participar da pesquisa e de que estava muito ocupado. No relato, o recenseador afirmou que, ao olhar brevemente para o interior da casa, viu um menino seminu escondido por trás de umbral que separava o primeiro cômodo dos demais. Não teve tempo para contra-argumentar com o homem, que fechou a porta em sua cara. “Não podia fazer nada, não sabia se ele tava armado ou se não tava, se tava acompanhado ou não, mas fiquei preocupado com o menino. Não sabia o que aquele homem era dele, se era pai, se era tio”. Por não ter sinal de celular naquele lugar, voltou às pressas para a cidade, em sua moto, para acionar a polícia local. No mesmo dia soubemos que o homem descrito no relato do recenseador era tio do menino, de nove anos, e que este tinha sido violentado pelo tio. Esse foi o primeiro de 12 episódios de violência sexual relatados pelos recenseadores somente em um mês de atuação na zona rural do município de Matriz de Camaragibe (Dados da pesquisa).

Os dados apresentados neste artigo foram obtidos de um levantamento piloto conduzido entre os meses de agosto e outubro de 2022 em sete municípios do interior do estado de Alagoas, a saber, Matriz de Camaragibe, Passo de Camaragibe, Porto Calvo, Colônia Leopoldina, Novo Lino, Ibateguara e São José da Laje (ver Figura 1). Esse levantamento reuniu dados de 238 ocorrências de estupro obtidas a partir de estatísticas criminais oficiais, boletins de ocorrência e diários de campo com amplas descrições sobre minha experiência no Censo.

A amostra do estudo compreende 142 casos de estupro de vulnerável (vítimas com idades entre 1 e 14 anos) e 96 casos de estupro (vítimas com idades entre 15 e 17 anos). Os dados incluem informações sobre a idade e estado civil das vítimas, situação demográfica e socioeconômica dos agressores, relação entre vítimas e agressores, métodos utilizados pelos agressores para aliciar as vítimas, horário e local do crime. Foram realizadas análises descritivas e tabulações cruzadas para atender aos objetivos do estudo.

A metodologia de pesquisa também envolveu o registro sistemático de conversas com as vítimas de estupro, familiares e profissionais dedicados ao tratamento das ocorrências, como assistentes sociais, psicólogos, delegados, preservando seu anonimato e garantindo a confidencialidade das informações compartilhadas. Essas conversas, documentadas nos diários de campo, contribuíram significativamente para qualificar parte dos dados obtidos. O recurso dos diários de campo também permitiu que a pesquisa se tornasse mais participativa.

Os dados qualitativos obtidos foram classificados em categorias e as frequências de cada categoria foram analisadas. Como foi mencionado anteriormente, nenhum dos dados levantados nessa etapa pesquisa permitiu a identificação das pessoas as quais as ocorrências se referiam, nem a seus vínculos, nem às suas funções, dispensando a necessidade de submeter o estudo à apreciação de comitês de ética conforme os termos do inciso V do art. 1º da Resolução n.º 510, de 7 de abril de 2016, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).

Figura 1
Mapa de localização da região de estudo
Mapa de localização da região de estudo
Fonte: Elaborado pelo autor.

3.1 Contextualização das unidades da região de estudo

A ruralidade de Alagoas é composta com uma variedade de fluxos e redes que vão além do número populacional e do difícil acesso. Alagoas, apesar de ser o segundo menor estado do Brasil em termos de área, apresenta uma grande diversidade em sua geografia rural, tanto em termos de sua paisagem física quanto da composição socioeconômica e cultural de suas comunidades rurais.

A economia rural de Alagoas é dominada pela agricultura, especialmente a produção de cana-de-açúcar, que tem sido uma parte integral da paisagem rural do estado desde o período colonial. Além disso, há um número significativo de pequenas propriedades rurais dedicadas à agricultura familiar e à pecuária, o que contribui para a diversidade econômica e a subsistência das comunidades rurais (Júnior, 2006).

As redes de transporte e comércio desempenham um papel crucial na definição dos territórios rurais de Alagoas. As estradas, embora muitas vezes em condições precárias, ligam as áreas rurais às cidades e aos mercados, enquanto os rios, historicamente usados para o transporte de mercadorias, ainda são vitais para algumas comunidades. Essas redes não apenas facilitam o movimento de pessoas e mercadorias, mas também contribuem para a formação de redes sociais e culturais.

A paisagem rural de Alagoas é também moldada por uma série de fluxos migratórios. A migração do campo para a cidade, impulsionada pela busca de melhores oportunidades de trabalho e educação, tem impactado significativamente a composição demográfica e a estrutura social das comunidades rurais. Ao mesmo tempo, o retorno de migrantes, muitas vezes trazendo novas ideias e habilidades, também tem contribuído para a dinâmica das comunidades rurais (Carvalho, 2008).

A ruralidade de Alagoas também é caracterizada pela presença de comunidades tradicionais, como os quilombolas e os povos indígenas, que mantêm estreitas ligações com a terra e possuem formas distintas de organização social e territorial. Essas comunidades representam não apenas uma importante dimensão da diversidade cultural do estado, mas também desempenham um papel crucial na defesa dos direitos territoriais e na preservação do meio ambiente (Júnior, 2006).

Esse retrato qualitativo da ruralidade de Alagoas é complementado pelos dados quantitativos apresentados na Tabela 1, que sumarizam os principais indicadores socioeconômicos dos municípios pesquisados. Os dados nos permitem observar os contextos em que ocorrem os crimes sexuais, acentuando a importância de entender a ruralidade não apenas como uma localização física, mas também como um cenário multidimensional de relações sociais, políticas, culturais e econômicas.

A população, por exemplo, é um indicador essencial para compreender a dimensão das áreas em estudo e seu potencial impacto na incidência e no relato de crimes sexuais. A densidade populacional pode afetar a frequência de interação social e, consequentemente, a ocorrência de crimes. Por sua vez, os percentuais de população urbana e rural delineiam o tipo de ambiente predominante nos municípios estudados. Esses dados nos auxiliam a entender a dinâmica da violência sexual em áreas rurais versus urbanas, podendo influenciar variáveis como acesso à assistência e a frequência de denúncias.

Gênero e raça/cor são indicadores-chave para analisar as interseções de vulnerabilidades que podem aumentar o risco de violência sexual. A desigualdade de gênero e a discriminação racial podem exacerbar a incidência de crimes sexuais e a resposta à violência.

O PIB per capita serve na avaliação do nível socioeconômico dos municípios. Comunidades com baixa renda per capita podem ter menos recursos para prevenir e responder à violência sexual, além de possuir maior prevalência de vulnerabilidades associadas.

A taxa de alfabetização reflete o nível educacional da população, sendo um indicador de acesso à informação e conscientização sobre direitos e violência sexual. Uma taxa de alfabetização mais baixa pode ser um obstáculo para a denúncia de crimes e para o acesso a serviços de apoio.

Por fim, a taxa de desemprego pode indicar níveis de estresse econômico na comunidade, que podem estar associados à incidência de violência. Além disso, o desemprego pode aumentar a vulnerabilidade à violência sexual, especialmente entre mulheres jovens.

Todos esses indicadores fornecem uma base sólida para a análise da incidência dos crimes sexuais nas áreas rurais, ajudando-nos a identificar os fatores que contribuem para a violência sexual e a entender como esses fatores se inter-relacionam no contexto específico das comunidades rurais brasileiras.

Tabela 1
Indicadores socioeconômicos dos municípios selecionados no estudo
MunicípioPopulação% População urbana% População ruralGêneroRaça/CorPIB per capitaTaxa de alfabetizaçãoTaxa de desemprego
Matriz de Camaragibe19.55688,211,849,3 % Fem., 50,7 % Masc.53,1 % Negro, 46,9% BrancoR$14.483,7194,80 %10,50 %
Passo de Camaragibe14.76387,612,450,5 % Fem., 49,5 % Masc.51,8 % Negro, 48,2 % BrancoR$12.402,6892,80 %11,40 %
Porto Calvo21.71191,18,949,5 % Fem., 50,5 % Masc.52,2 % Negro, 47,8 % BrancoR$15.693,7094,50 %10,90 %
Colônia Leopoldina11.47486,014,049,9 % Fem., 50,1 % Masc.54,4 % Negro, 45,6 % BrancoR$10.470,7393,50 %12,10 %
Novo Lino18.52589,310,749,6 % Fem., 50,4 % Masc.53,4 % Negro, 46,6 % BrancoR$13.790,8494,20 %11,10 %
Ibateguara12.68987,112,949,8 % Fem., 50,2 % Masc.51,9 % Negro, 48,1 % BrancoR$11.281,0193,90 %11,80 %
São José da Laje20.34190,29,949,5 % Fem., 50,5 % Masc.52,4 % Negro, 47,6 % BrancoR$14.999,5194,70 %10,70 %
Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos dados da PNAD Contínua e do Censo de 2010 (IBGE, 2019, 2010).

4. Resultados e discussão

Dos 238 casos de estupro reportados, 196 (86,2 % do total) envolvem estupros cometidos por um único autor, e os outros 42 casos (13,8 %), estupros cometidos por dois ou mais autores (crimes tipificados como estupros coletivos, conforme o inciso IV do art. 226 do CP). Os incidentes reportados compreendem majoritariamente vítimas crianças do sexo feminino. Apenas 7 casos (2,9 %) relatados tiveram vítimas do sexo masculino. Em todos os casos os agressores eram do sexo masculino. A maior parte das vítimas tinha entre 7 e 15 anos de idade. A vítima mais jovem tinha menos de 1 ano (1 caso). Por outro lado, a idade dos agressores variou de 12 a 70 anos. Mas a faixa etária com a maior concentração de agressores foi observada entre os 18 e 25 anos, que reuniu pouco mais de 42 % dos casos. O número de agressores não-casados observado foi duas vezes maior que o número de agressores casados (68,5 % e 31,5 %, respectivamente).

Figura 2
Distribuição comparativa das idades dos agressores e das vítimas de estupro
Distribuição comparativa das idades dos agressores e das vítimas de estupro
Fonte: Dados da pesquisa.

Em 79 % dos casos reportados (189 casos) as vítimas tinham como agressores familiares, cônjuges ou conhecidos (como vizinhos e padrinhos). O número de crianças vítimas de um estupro por um familiar direto foi de 55 casos, cerca de 23 % do total de casos. Nessa relação estão incluídos pais, avós, tios, primos e outros familiares com algum vínculo por consanguinidade com a vítima. Em 76 casos (31,9 %) os agressores eram familiares indiretos da vítima, isto é, padrastos, enteados ou outros familiares vinculados por afinidade. Em 58 casos (23,7 %) as vítimas foram sexualmente agredidas por conhecidos, isto é, colegas de escola, tutores, vizinhos, empregadores, padres e médicos. Em 49 casos (cerca de 21 % do total) a agressão foi cometida por um desconhecido (ver Tabela 2).

Tabela 2
Relação da vítima com o agressor (N = 238)
RelaçãoFreq.%
Vínculo familiar direto (relação familiar por consanguinidade)5523,1
Vínculo familiar indireto (relação familiar por afinidade)7631,9
Conhecido5824,4
Desconhecido4920,6
Fonte: Dados da pesquisa.

Em 109 casos (45,7 % do total) a estratégia de aliciamento das vítimas era a oferta de dinheiro. Mais de 25 % dos incidentes ocorreram quando das vítimas estavam sozinhas fora de casa (por exemplo, a caminho ou retornando da escola, sozinhas na igreja, brincando nos campos e plantações ou banhando-se em rios ou açudes). Uma em cada seis crianças foi estuprada em sua própria residência (ver Tabela 3).

Tabela 3
Locais dos incidentes (N = 238)
Locais dos incidentesFreq.%
Residência do agressor6627,7
Residência da vítima4016,8
Outras residências (de parentes, amigos ou conhecidos da vítima ou do agressor)3816,0
Pastos e plantações2410,1
Estradas197,9
Instalações agrícolas abandonadas156,3
Escolas125,1
Igrejas93,8
Hospitais41,7
Outros114,6
Fonte: Dados da pesquisa.

Em 23 casos (9,7 %) os agressores invadiram a casa da vítima. 4 casos de estupro foram cometidos por um mesmo médico, que isolava as vítimas de seus familiares sob o pretexto de precisar realizar outros exames nas crianças. Os horários que concentraram uma maior incidência de casos foram os horários da tarde (46 %) e da noite (26 %).

Figura 3
Distribuição das ocorrências por turno
Distribuição das ocorrências por turno
Fonte: Dados da pesquisa.

Até aqui observamos os contextos de maior incidência dos crimes de estupro em zonas rurais do estado de Alagoas. Foram descritos os períodos, os locais, a natureza das relações entre vítimas e agressores e seus respectivos perfis. Com base nesses achados, a discussão a seguir se lança sobre alguns aspectos dos crimes sexuais, como a vulnerabilidade à qual estão sujeitas crianças e adolescentes, os estereótipos sobre os papéis de gênero e sobre a dominância masculina, o perfil dos agressores e a tolerância social em relação ao estupro.

Em regiões da África Subsaariana, onde a incidência de estupros contra crianças é extremamente elevada em comparação com outros lugares do mundo, o risco de vitimização para esse tipo de crime acomete preponderantemente crianças e adolescentes com idades entre 10 e 17 anos (Shilumani, 2004). Em alguns casos do sul da Ásia, como em comunidades rurais de Bangladesh, esse risco é maior entre crianças de 8 a 16 anos (Fattah & Kabir, 2013). Os dados apresentados neste estudo apontam que, no caso das zonas rurais de Alagoas, a faixa etária que apresenta maior vulnerabilidade em relação aos crimes sexuais é aquela compreendida entre 7 e 15 anos. Crianças com idades inferiores à desta faixa etária são susceptíveis de serem facilmente manipuladas pelos agressores, que se aproveitam da confiança e das posições de autoridade que têm em relação às vítimas.

Por outro lado, em média após os 15 anos de idade, as crianças começam a perceber mudanças físicas, geralmente acompanhadas por mudanças emocionais e autopercepções confusas, que podem ser apropriadas pelo agressor com o objetivo único de perdurar a condição de abuso. Todas as 7 vítimas do sexo masculino relataram ter menos de 10 anos, o que indica que enquanto as meninas continuam vulneráveis à agressão sexual durante a adolescência, este pode não ser o caso de meninos. À medida que as crianças do sexo masculino começam a amadurecer fisicamente podem se tornar mais capazes de resistir ou se defender contra o abuso sexual.

Embora a prática do casamento infantil ainda seja muito recorrente no Brasil (Costa & Freitas, 2019), sobretudo no Brasil rural, neste estudo apenas 8 meninas relataram estar casadas entre as 238 vítimas de estupro. É possível que, em comparação com as meninas solteiras, as meninas casadas sejam menos vulneráveis ao abuso sexual. Os agressores podem ter uma espécie de preferência por meninas solteiras, motivados pelo alto valor dado à virgindade feminina (Almeida, Penso & Costa, 2009). Um estudo recente realizado em comunidades do leste da Índia mostra que os pais tendem a casar as filhas muito cedo em uma tentativa de protegê-las do assédio sexual, porque meninas solteiras estão mais sujeitas a esse tipo de prática que meninas casadas (Schreber, D'Oliveira & França Junior, 2008; Bueno & Lopes, 2018; Costa & Freitas, 2019).

Os dados obtidos no presente estudo também sugerem que homens jovens solteiros são mais propensos a abusar sexualmente de crianças e adolescentes que homens casados e mais velhos. Em que pesem os componentes que engendram as repressões sexuais enfrentadas pelos agressores, a alta incidência de crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes por indivíduos do sexo masculino reflete o peso da socialização de gênero (Almeida, Penso & Costa, 2009). Desde muito cedo os homens são socializados para serem mais agressivos que as mulheres. Quando atingem a adolescência, esses indivíduos apreendem um sistema de valores que significa supostas prerrogativas masculinas ou expectativas de gênero que se estendem desde a distribuição das atividades laborais aos relacionamentos e, consequentemente, à constituição familiar. No curso desse processo os homens internalizam estereótipos sobre a performance erótica e a disponibilidade sexual das mulheres, ou de crianças do sexo feminino (por exemplo, a condição de uma menina em um casamento infantil) (Schreber, D'Oliveira & França Junior, 2008; Almeida, Penso & Costa, 2009; Bueno & Lopes, 2018; Costa & Freitas, 2019).

A socialização para a agressividade sexual, cultivada no âmbito familiar e reiterada no seio da comunidade, sustenta o desenvolvimento de uma espécie de senso de direito no qual se encontra imbuído o direito ao sexo. No caso da violência sexual contra crianças e adolescentes, para os agressores do sexo masculino, o ato serve ainda como uma manifestação de sua posição de poder e autoconfiança, sobretudo para aqueles que sentem que têm identidades masculinas inadequadas ou as veem como contestadas. Esses agressores experimentam uma sensação de controle e domínio mediante o abuso da vítima (Shilumani, 2004).

Embora não tenham sido observados casos de mulheres agressoras nos casos analisados, isso não significa que as mulheres não abusem sexualmente de crianças nas zonas rurais de Alagoas. Padrões morais rígidos ditam as fronteiras das relações sexuais, e apenas as relações sexuais entre homens e mulheres são abertamente endossadas nas comunidades rurais as quais foi possível ter acesso. Relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo ainda são um tabu nessas comunidades. Portanto, mesmo que o episódio de estupro tenha sido praticado por uma mulher adulta em uma criança do sexo feminino, é possível que tenha sido suprimido pelas vítimas ou suas famílias e, portanto, não tenha sido relatado.

Estupros cometidos por mulheres também podem não ser percebidos como estupro por parte de algumas vítimas porque sobre as mulheres repousa o estereótipo de “cuidadoras”. Esse mesmo estereótipo acaba por justificar uma espécie de contato mais íntimo com as crianças. Nesse sentido, pode ser algo difícil, especialmente para crianças mais novas, reconhecer se ele ou ela está sendo abusada sexualmente por uma cuidadora.

Os dados obtidos neste estudo mostram que as crianças foram abusadas sexualmente em uma ampla variedade de ambientes, incluindo as casas das vítimas e dos agressores, campos de cultivo, beiras de açudes, hospitais, escolas e até mesmo igrejas. Uma em cada 6 vítimas foi submetida ao abuso sexual em sua própria casa. Em ambas as situações, estar sozinho sem a presença de um adulto vigilante foi o principal fator de vulnerabilidade para as vítimas. É comum nas áreas rurais que, do meio-dia ao anoitecer, os adultos estejam fora de casa para trabalhar ou realizar outras atividades, deixando as crianças sem vigilância em casa.

Os achados por ora descritos demonstram que nesses períodos, principalmente à tarde, ocorre o maior número de incidentes. Quando as vítimas estavam fora de suas casas sozinhos, os agressores as atraíam com promessas de ganhos de dinheiro, que é um forte atrativo para crianças que vivem em condições de pobreza, como vivem as crianças das zonas rurais alagoanas. Também houve casos em que o agressor se ofereceu para levar a vítima para festas, parques ou, simplesmente, para dar uma volta de moto nos arredores. Os dados obtidos (não apresentados anteriormente) também demonstram que o principal instrumento de coação empregado pelo agressor é a força física, com raras exceções para os casos em que foi observada a utilização de álcool ou outras drogas para entorpecer a vítima.

Das 32 vítimas que relataram informalmente a situação ocorrida (relatos cujas descrições foram registradas em diário de campo), 16 afirmaram não ter denunciado o episódio à polícia. Uma dessas 16 vítimas alegou ter desistido de prestar queixa ao descobrir que o delegado era um conhecido de seu agressor. A falta de confiança nas autoridades foi um dos elementos mais destacados nas falas das vítimas. Parte dos relatores afirmaram preferir resolver as questões relacionadas aos episódios de estupro com o(s) agressor(es) a acionar as autoridades por três motivos: em primeiro lugar, pela relação que mantinham com o agressor (que na maioria das vezes era um conhecido da família ou um próprio familiar); em segundo lugar, por não acreditarem no trabalho da polícia e das instâncias judiciais, e, em terceiro lugar, por temerem o estigma e outras repercussões negativas que a difusão do caso pudesse ter sobre a família. Como forma de resolução da questão os agressores tendem a pagar quantias em dinheiro para a família da vítima a fim de que o caso “seja esquecido”. O medo de agressores com relativa influência local (como o caso do médico, mencionado anteriormente) também impede que as vítimas e os familiares das vítimas denunciem os episódios de estupro.

A omissão das denúncias e a consequente falta de punição dos crimes sexuais nas zonas rurais enviam uma mensagem silenciosa não só para os agressores, mas também para a sociedade como um todo, qual seja, a de que é possível escapar impune dessas práticas. Essa impunidade, por sua vez, reforça o machismo e com ele um suposto senso de direito dos homens sobre outrem, deixando crianças, particularmente as do sexo feminino, vulneráveis a esse tipo de abuso.

A difusão dos crimes sexuais contra crianças compreende uma trama que envolve diferentes elementos, incluindo valores, normas, crenças e construções sociais, que promovem as condições em que esses crimes prosperam. Pode haver uma suposição de que tal comportamento é “naturalmente masculino” e de que os homens precisam aprender a inibi-lo por constrangimentos culturais, uma afirmação essencialista, embora a influência da estrutura patriarcal dificulte esse tipo de constrangimento.

No caso de Alagoas, tal como em outros cantos do Brasil, o fracasso do Estado em coibir essas práticas contribui para uma tolerância social implícita em relação aos crimes sexuais contra crianças. É esse mesmo estado de permissividade que perpetua a sujeição de meninos e meninas a crimes sexuais, mas sobretudo de meninas que amadurecem e se tornam mulheres conservando a ideia de que a agressão sexual e o assédio que elas experimentam por parte dos homens fazem parte da vida cotidiana. Essa tolerância social implícita associada a sanções legais fracas e ineficazes fortalecem ainda mais os desinibidos entre os agressores, o que repercute, inevitavelmente, no aumento da violência sexual contra crianças e mulheres.

5. Considerações finais

As comunidades rurais do Brasil são amplamente diversas em suas características e modos de vida. No entanto, muitas delas têm em comum a dificuldade em prover assistência às vítimas de violência sexual. A cultura de omissão contribui para esse quadro. Em muitas comunidades rurais brasileiras, a honra e a reputação familiar são valores altamente estimados. Nesse contexto, questões relacionadas à violência sexual podem ser encaradas como manchas à honra da família, levando à supressão da discussão e ao silêncio das vítimas. Outros fatores, como a indisponibilidade de meios de transporte ou a localização geográfica remota, dificultam sobremaneira o acesso e a denúncia de crimes nas instâncias especializadas. Esse cenário de subnotificação pode levar a uma percepção equivocada de que há uma baixa demanda por tais serviços na área rural, e essa visão, por sua vez, pode resultar em uma alocação insuficiente de recursos, negligenciando as necessidades dessa população vulnerável.

A despeito de seu escopo limitado, o presente estudo tentou identificar padrões nos crimes sexuais em zonas rurais do estado de Alagoas. Crianças, especialmente as meninas, mostraram-se extremamente vulneráveis. Não há lugar seguro para essas crianças, que em muitas das vezes são violentadas em suas próprias casas. A cultura de omissão – tanto quanto a ausência de vigilância em casa e na comunidade e, em parte, a incapacidade das crianças para relatar os incidentes de abuso – contribui para a reincidência e para a subnotificação desses crimes, o que exige mais estudos com amostras maiores, a fim de obter resultados mais significativos e úteis no desenvolvimento e direcionamento de programas de prevenção e combate aos crimes sexuais.

Este estudo reserva potencial para a criação de políticas públicas abrangentes de prevenção à violência sexual nas comunidades rurais. A lacuna existente em serviços para as vítimas em áreas rurais é um reflexo de várias barreiras (atitudinais, de transporte, de isolamento geográfico) que necessitam ser tratadas de forma integrada. Os padrões identificados neste estudo, especialmente a vulnerabilidade de meninas e crianças, podem orientar ações específicas de políticas públicas. É imperativo que se criem ambientes seguros nas comunidades rurais, começando pelo lar. Políticas públicas devem investir em programas de conscientização, educação e capacitação, abordando tópicos como o consentimento e os direitos da criança, para desconstruir a cultura de omissão e silêncio.

Um ponto de partida seria fortalecer a rede de assistência social nas áreas rurais, aumentando o financiamento e o apoio para serviços de apoio às vítimas de violência sexual. Isso envolve a construção de centros de apoio à vítima que sejam acessíveis e que forneçam atendimento psicológico e jurídico.

O transporte, uma barreira identificada pelo estudo, deve ser abordado. Pode-se implementar um sistema de transporte público mais eficaz ou fornecer transporte gratuito para vítimas que buscam acesso a serviços de apoio. Também é vital melhorar as redes de comunicação para que as vítimas e suas famílias possam denunciar crimes e buscar ajuda.

Entender o modus operandi dos agressores e a percepção da comunidade sobre os crimes sexuais é crucial para a elaboração de estratégias de prevenção eficazes. Isso pode incluir campanhas de sensibilização que desafiem as atitudes permissivas em relação à violência sexual e esclareçam sobre as consequências legais do abuso sexual.

Além disso, as famílias e as comunidades devem ser empoderadas para enfrentar a violência sexual. Isso pode ser alcançado através de programas de educação que promovam relações de gênero igualitárias e respeitosas, assim como mecanismos comunitários de vigilância e denúncia.

Por fim, é essencial que mais estudos sejam realizados para entender melhor a incidência e os padrões da violência sexual em áreas rurais. Esses estudos devem envolver amostras maiores e metodologias diversas para fornecer uma imagem mais precisa do problema, garantindo assim que as políticas e programas de prevenção sejam eficazes e adequados ao contexto rural.

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Notas

1 Descrito pelo art. 213 do Código Penal brasileiro (CP) como o ato de “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (Brasil, 1940).
2 Por sua vez, descrito pelo art. 217-A do CP como o ato de “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos” (BRASIL, 1940).

Recepción: 27 Octubre 2022

Aprobación: 18 Julio 2023

Publicación: 01 Agosto 2023

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